As
reviravoltas na vida de Samira, jovem árabe que imigra com a família pra o
Brasil. Seu pai, depois de uma vida luxuosa em Damasco, está falido; lutam para
recomeçar, vencem, prosperam. Quando tudo parece se encaixar, uma proposta inesperada
envolve Samira numa incrível e frenética aventura que a leva de volta ao
Oriente, seus costumes milenares e infindáveis guerras religiosas.
A mulher do Bin Laden
Damasco
– Jorginho, meu filho – disse Zobaida. Você está falido.
Quanto antes encarar isto, melhor. Seu tio verificou minuciosamente suas
contas. Nós não podemos continuar ajudando você, seria uma injustiça com seus
irmãos.
– Você ainda não foi executado. Liquide seu estoque e vá com
sua família para o Brasil. Minha prima me disse que as coisas vão bem por lá.
Graças a Deus, seu pai não está mais aqui. Será uma vergonha para a família,
mas nós poderemos suportar.
– Lembre-se, você já fez todas as besteiras que podia fazer.
Entregue o dinheiro que sobrar nas mãos de Samira e deixe que ela administre.
Venha cá me dê um abraço.
Tupã
E assim se fez. Jorge Naffah, sua mulher Samira, seus filhos,
Samirinha e Eli, o menorzinho, foram para o Brasil. Mais precisamente para
Tupã, interior de São Paulo, onde morava a prima de Zobaida.
Logo perceberam que as coisas não iam tão bem assim. O marido
morreu e a prima descobriu que a situação não era aquele mar de rosas. A duras
penas, conservaram a casa no bairro nobre da cidade e tinham dificuldade para
manter as aparências.
De qualquer forma, foram de grande ajuda, receberam os
imigrantes em sua casa. Prestígio ainda tinham. Avalizaram o contrato de
locação, ajudaram com os papéis.
Depois da viagem, as posses dos Naffah eram minguadas.
Alugaram uma esquina em frente à igreja. Não era o bairro nobre, mas era bom.
Na frente tinha um salão comercial, no fundo uma residência
com um quintal, árvores, galinheiro e tudo mais. Era de um patrício que voltara
para sua terra. Um achado.
A língua era um problema, todos aprendiam, se esforçavam. A
prima, para ajudar, mandou para morar com eles Carolina. Ela era brasileira,
filha de uma comadre. A menina ficou órfã e fora recolhida ainda nos tempos de
fartura, agora estava difícil de manter.
Carolina foi uma benção, era diligente, inteligente,
convivera com os pais, falava a bem língua, não tinha preguiça de ajudar. Tinha
a mesma idade de Samirinha, ficaram amigas na hora. Finalmente, ela tinha de
novo uma família.
No começo, foi tudo muito difícil, Samira controlava cada
centavo. Quando o dinheiro estava acabando, finalmente as coisas começaram a
melhorar.
O comércio recebeu o pomposo nome de “Estrela do Oriente”.
Eles não sabiam bem o que vender, compraram um pouco de tudo.
Com o tempo, foram atendendo às necessidades do bairro,
descobriram que o fiado era o principal. Incrível, gente muito boa, mas viviam
no limite. Os Naffah achavam que não tinham nada. Surpreenderam-se com aquele
povo, que, na metade do mês, não tinham mais nem para comer. Recebiam, gastavam
tudo, voltavam para o fiado.
Samira, recheando os quibes, pensava: – Eu tenho fé, confio
no bom Deus, mas este povo se entrega completamente em suas mãos.
Samira era boa em tudo que fazia. Na cozinha ela era
imbatível. Seus quitutes eram o sucesso do estabelecimento. Inacreditável que
uma mulher criada no conforto saiba estas coisas. Todos trabalhavam, Jorge
passava horas e horas naquela loja. As meninas ajudavam na cozinha, Samirinha
gostava de cuidar das galinhas.
Observadora, a boa cozinheira notou que deveria diminuir o
Zathar, o pessoal não estava acostumado. Aprendeu as receitas da terra, logo a
coxinha da “Estrela do Oriente” era a melhor da cidade. Ficava encantada com a
fartura, principalmente de carne de vaca.
Também não entendia como as mulheres pagavam por comida
pronta, se os ingredientes eram tão mais baratos. Não discutia, tinha uma
família para sustentar, filhos para criar. Foi aumentando os preços
devagarinho.
As meninas foram juntas para a escola. Carol ajudava
Samirinha com a linguagem. Samirinha retribuía com aritmética, tinha um talento
natural para as contas.
As meninas, mais Eli, o menorzinho, estudavam na loja. De
tarde, era meio parado. Jorge – à espera dos clientes – passava horas ensinando
o complicado alfabeto árabe para os filhos.
Contava a história do seu povo, as lendas. Ele era um homem
muito bem educado. Fraco para os negócios, mas educado. Contava como a sua
família era importante, seus títulos, sua riqueza. Sonhava um dia poder pagar
as dívidas e voltarem todos para Damasco.
De qualquer maneira, a mãe de Jorge acertara em cheio.
Os Naffah começaram quase do zero, levavam uma vida muito
mais simples do que estavam acostumados, mas tinham esperança, estavam melhor.
A natureza bonachona de Jorge, controlada pela segurança de
Samira, fazia sucesso. Ele era simpático com a clientela, sabia escutar, era
bondoso.
Samira também conquistou seu espaço, logo que dominou a
língua, suas vizinhas descobriram nela uma mulher forte, justa e sábia, corriam
para ela.
– Dona Samira! Pelo amor de Deus, meu filho está ardendo em
febre.
Ela dava purgante, fazia chás, dava segurança para a mãe
aflita.
O padre, alemão, gostava de passar de tarde, tirar um dedo de
prosa com Jorge, tomar uma cachacinha gelada.
Com o tempo acabou convencendo Jorge que Deus era o mesmo em
qualquer lugar e que mal não faria levar a família à missa aos domingos.
Samira sentia-se responsável. Logo de início, tinha procurado
os patrícios, queria saber onde faziam suas orações. Notou primeiro que sua
situação difícil – quase quebrados – não era um passaporte na comunidade árabe.
Na verdade, descobriu que nem tinham uma comunidade. O grosso
da imigração árabe acontecera há muito
tempo. Os patrícios tinham se casado com italianos, misturando-se. Esta terra
os recebera de coração aberto, tinham se tornado brasileiros. Concordou com o
marido, pareceriam menos esquisitos se fossem à missa.
A família toda vestia sua roupa de domingo e iam à missa das
oito. Quando acabava a missa das dez, a “Estrela do Oriente” estava aberta e
era o point. Muitos paravam para tomar um guaraná, comer um salgadinho. Quem
comungou, ainda não tinha comido nada, estava com fome.
Naquele ano, o carneiro recheado da Dona Samira foi a prenda
mais valorizada da quermesse. Um sucesso absoluto.
Os anos foram passando.
Para Samirinha, passou mais rápido. Aquela menina – magrinha,
assustada – cresceu. Tinha os cabelos compridos, sedosos, encaracolados. Eram
castanhos e incríveis. De longe, pareciam emaranhados; de perto eram brilhantes,
cheirosos e macios. Muito macios. Seus amigos gostavam de apertar os cachos,
com cuidado, devagarinho.
Os Naffah compraram o imóvel, construíram mais um andar,
ficou bonito. Tinha um grande terraço com vista para o largo da igreja. Claro
que sempre existem altos e baixos, dificuldades. De qualquer forma,
progrediram.
Samirinha, ainda novinha, já respeitava a lei universal das
mulheres, a das escolhas insensatas, a opção pelo “mala”.
Não gostava de ver sua mãe descuidada, trabalhando de sol a
sol. Admirava e amava seu pai mais do que tudo no mundo, achava que ele era
elegante. A mãe era muito sábia para deixar-se abater por isto, continuava
cuidando da filha com desvelo e muita atenção.
As meninas
Se aos costumes locais Samira se entregara, isto de forma
nenhuma se aplicava às suas filhas, ali era jogo duro. Não tinha chance, as
meninas estavam sob controle o tempo todo.
Quando completaram quinze anos, o colunista social da cidade
procurou o casal Naffah.
– Meus queridos, minha festa de debutantes não pode acontecer
sem suas filhas. Elas são as moças mais bonitas de Tupã.
– É mesmo? Que maravilha! – exclama Jorge.
Samira, que não gostava muito do tipo, acrescenta
diplomaticamente.
– Admiramos muito seu trabalho, mas temo que esteja acima de
nossas posses. O senhor entende, não é mesmo?
– De maneira nenhuma, minha senhora. Não cobramos nada por
isto, é tudo pela festa, as meninas iriam enfeitá-la.
– Viu, Samira? – anima-se Jorge.
Samira, que não se deixa levar fácil, retruca.
– Mas certamente haverá despesas, quais seriam?
– Coisa mínima. Naturalmente, as meninas deverão ser
fotografadas pelo nosso estúdio, as fotos precisam sair no jornal. Teríamos
então uma pequena despesa com as fotos, os clichês, vocês entendem, claro.
A sábia senhora sente o cheiro de uma armação de longe. Fecha
o assunto.
– Aceita mais um quibe? Um pouquinho de coalhada seca? Não?
Está bem. Vamos conversar e telefonamos para o senhor se as meninas se
interessarem. Vou embrulhar uns docinhos de massa folhada com mel, sei que sua
mãe adora. Você vai levar para ela. Muito obrigado pela nota na semana passada,
é muito importante para nós. Não nos esqueça. Venha sempre nos visitar, semana
que vem faremos aquela esfirra de coalhada e chicória que você gosta, venha
comer, é nosso convidado.
Quando ele sai, fala para o marido.
– Jorginho, pelo amor de Deus, já teremos problemas demais
com estas meninas dentro de casa, imagine numa vitrine!
Jorge – como tem feito nos últimos anos – se cala, mas se
entristece. Nos bons tempos, Samirinha seria a debutante mais bonita e melhor
vestida do clube mais elegante de Damasco, e ele ali vendendo quibes – Hara!
Carol ficou um pouco sentida, loira e linda, já se via
naquele vestido branco, recebida por um artista da televisão, dançando com um
dos príncipes.
Samirinha não deu a mínima. Ficou chateada com a frustração
do seu pai. Sua mãe não deixava ele fazer nada do que ele queria.
O tempo foi passando, as duas meninas eram cada vez mais
diferentes, Carol ganhou formas arredondadas, foi ficando coquete, os rapazes
alucinavam por ela, gostava de vestidos, maquiagem, horas no espelho se
arrumando.
Samirinha também ganhou formas. Era alta, magra, seios
pequenos. Aqueles cabelos encaracolados e brilhantes. Ela os prendia dos lados,
acima das orelhas, para não atrapalhar, caíam até quase à cintura. Tinha uma
pintinha no canto direito da boca. A pinta escurecia quando ela estava brava.
Estava sempre com uma camisa branca e umas saias compridas de estampas
orientais.
Carol apaixonou-se perdidamente. Ali não tinha chance, só
casando, e foi o que aconteceu.
Dona Samira remoía, era contra, muito cedo. Não teve jeito. O
rapaz também estava apaixonado, era boa gente, família boa. A madrinha fazia
gosto. No fim, quer saber? – era melhor mesmo, aquela loira não ia durar muito
solta no meio daquela alcateia.
O padre alemão adorava aquelas meninas, mandou estender o
tapete vermelho da igreja até à porta da casa dos Naffah.
Até hoje, quem vai a Tupã é apresentado ao casal, ele
fazendeiro, ela linda e educadíssima. Depois, tem que escutar dos filhos e do
casamento. Da noiva, que foi a mais linda de todos os tempos, e dos pratos
maravilhosos que foram servidos. De como a festa entrou madrugada a dentro,
naquela noite de lua cheia que brilhava sobre o terraço dos Naffah.
Foi a primeira extravagância em anos, mas o casamento de uma
filha para um árabe é muito importante.
Samirinha foi estudar ciências da computação em Marília.
Marília
Samirinha foi morar na casa de uma família de árabes, amigos
da prima da mãe de Jorge.
Era uma família grande. Também tinha conhecido dias melhores,
mas viviam bem.
Os jovens, entre os quais Samira logo foi incluída, ficavam
por conta da tia Nádia. Ela não teve filhos, cuidava de todo mundo.
A rédea continuou curta como sempre, mas era diferente. tia
Nádia era rigorosa, mas não era sua mãe. Podiam conversar. Nádia recebera uma
educação esmerada, além do árabe e do português, falava e escrevia francês e
inglês.
Logo no primeiro ano, Samira ficou amiga do Giardini. Era o
único, além dela, que estava interessado nas aulas. Tirando uma japonesa de
Jales que também era amiga deles, o resto da turma não tinha noção do que se
passava.
Giardini tinha sobrenome italiano, mas lembrava um árabe,
entradas precoces, cabelo encaracolado e uma barbinha meio rala. Gordinho. Não
balofo, gordinho.
– Tia Nádia, pelo amor de Deus, vou explodir, ninguém faz
charutinhos melhor do que a senhora. Olhe que minhas tias são do ramo. Se
escutam isto, estou morto.
E dá-lhe mais dois e mais dois.
– Tia Nádia! Mudou o cabelo, não pensa que me engana.
Namorado novo! Tenho certeza.
A velha senhora se derretia, este menino tinha uma fala
macia. Como tinha. Teve mãe, teve carinho, é assim se fazem estas pessoas.
Estavam sempre juntos, Samira, Giardini, a japonesa ficava na
dela.
Ninguém sabia se eram namorados ou o quê.
Samira estava mesmo é numa outra dimensão.
Ela era uma árabe, queria tirar seu pai daquela situação
difícil.
Tia Nádia gostava do Giardini, segurava a barra de Samirinha.
Era apaixonada pela garota. Deus lhe negara filhos – justo para ela! Com tanto
para ensinar. Seus sobrinhos eram uns néscios, perda de tempo. Uns Tchalas!
Nádia chamava Samira para ajudá-la quando preparava os pratos
requintados que vez por outra gostava de fazer. Cozinha francesa.
Entusiasmou a menina a estudar francês e melhorar o inglês do
colegial, pagava as aulas, encantava-se com os progressos da pupila.
Samira primeiro ensinou Nádia a jogar paciência no
computador. Depois a ler o jornal, ver as notícias. Configurou um e-mail, uma
página num site de relacionamentos. Nádia adorou aquilo tudo. Logo, tinha seu
computador. Samirinha é que arrumava tudo, claro, mas a senhora sentia-se o
máximo, de repente, Marília era o mundo inteiro aos seus pés, esnobava as
amigas.
Em Marília, ela era Samira – Dona Samira, sua mãe, ficara em
Tupã. Cresceu. Sofisticou-se. O mundo era pequeno para ela.
O primo
Os árabes são sempre muito inteligentes, mas com esta mania
de se casarem entre primos – para não dividir o dinheiro –, às vezes ficam meio
pancada, escapam a quarta. Vão fazendo tudo certinho, de repente enviesam para
um lado, nada a ver.
Jorge estava lá. Aceitara o conselho da mãe. Deu tudo certo.
Quer dizer, mais ou menos, sua mulher voltou à escravidão, trabalhava de sol a
sol para sustentá-los. Sua filha, estudando computadores, namorando um
barbudinho sem futuro...
Graças a Deus, Carolzinha, que tinha juízo, estava bem
casada, já tinha filhos, tudo bem.
Sua Samira – que trabalhara sempre como um mouro – estava
ficando cansada, não tinha mais a mesma paciência com as vizinhas, deixava tudo
na mão de Eli, o garoto era bom, mas enfim.
Dona Samira controlava tudo, ela era ótima no varejo, mas no
atacado as coisas estavam paradas. Não iriam muito longe. Estavam só
engordando.
Neste clima, recebem Omar.
Que elegância! Aquilo era ser um árabe, requinte, maneiras,
presentes, dinheiro.
O primo, com vários compromissos no país, passava por Tupã.
Lá estava ele. Preparado para o pior. Dias naquele inferno
tropical, parentes caipiras, aquele monte de comida. Ninguém merece.
Quebrou a cara, os primos eram ótimos, não poderia ter sido
melhor recebido em lugar nenhum do mundo.
O terraço dos Naffah era muito agradável.
Sete de setembro, feriado nacional. Juntou com o final de
semana, Samirinha veio ver os pais, Carol trocou os sogros pelos pais adotivos,
trouxe o marido e os filhos. Que dia feliz.
Elizinho tinha já uma namorada, era a sensação da noite. Para
um pai árabe, o filho com uma garota era a glória, um alívio.
Samirinha tinha inaugurado uma nova relação com sua mãe. Não
era mais uma menina. Respeitava Dona Samira, aquilo era uma instituição, mas
ela também tinha umas novidades.
Deu uns palpites no jantar, ajudou como quem sabe das coisas,
mais sofisticada, segura.
Encantou o primo, falou árabe, francês, imitou Sherazade nas
“Mil e uma noites”.
A cabeça da mãe, a mil. – Cachorra! Esta menina transou. E
gostou!!! – vou matar a Nádia.
A proposta
O tempo passou. Um belo dia, o primo aparece de volta, assim,
do nada.
– Brimo! Brecisamos conversar. Assunto muito imbordante.
– Diga lá, primo – responde Jorge.
– Voltei para Damasco com uma ideia na cabeça, não conseguia
parar de pensar nisto. Sua filha é uma princesa, brecisamos de casar ela com um
bríncepe.
Jorge parecia ter acordado de um sonho, tantos anos nesta
terra, esquecera-se dos antigos costumes. Claro, o casamento de Samirinha.
Tinham que pensar nisto, já tinha passado da hora, na verdade. Dona Samira
escuta de longe e franze a sobrancelha.
– Já está tudo acertado, Jorge. Você será dispensado do dote
e ainda conhecerá a gratidão de seu futuro genro, um homem rico e poderoso,
muito poderoso.
– Mas conta, primo. Quem é este homem?
– Confie em mim, Alá vai abençoá-lo, por toda a eternidade,
seus netos serão idolatrados.
A oferta era muito generosa, muito mais do que poderiam
esperar, vinha de um parente próximo. Pediram uns dias para pensar.
O mundo revirou-se na casa dos Naffah.
Os casamentos, para eles, eram assim mesmo, sempre fora. A
possibilidade de pagar suas dívidas, voltarem ao que eram. A filha casada com
um príncipe. Aquilo entrou na cabeça de Jorge e transformou-se em ideia fixa.
Não tinha outro assunto.
Dona Samira ficou dividida.
Estivessem ainda morando em Damasco, aquilo seria natural.
Fora assim com ela, com sua mãe, com todas as mulheres de sua família.
Ela mesma não tirara a sorte grande, mas enfim, seu casamento
deu certo. Sua sogra tinha acertado. Dona Samira sabia que era uma mulher
forte, dificilmente teria suportado um homem mandão. A natureza bonachona de
Jorge servira como uma luva, era um companheiro, respeitava seu ponto de vista,
tiveram filhos maravilhosos. Que mais poderiam esperar? A filha mais velha
casada com um príncipe. Rico, poderoso, muito poderoso, dissera o Primo.
Samirinha também não era fácil, além da personalidade forte,
precisava de espaço para crescer, não ia realizar-se em casa cuidando do marido
e dos filhos. A filha precisava de aventura. Pois estava aí. Casar-se com um
príncipe árabe.
De mais a mais, se não tomassem uma providência, logo ela ia
acabar ficando com a aquele barbudinho mixuruca.
Samirinha já tinha todos os créditos para receber o diploma.
Voltou para casa antes do final do ano.
Estava triste por causa de Giardini, o amigo também já
cumprira seus créditos, disse que ia entregar o diploma na mão do pai e começar
uma nova faculdade em São Paulo. Antropologia, sua verdadeira paixão. Tinha
arrumado um emprego à noite, no centro de processamento de um banco. Já estava
estudando para o vestibular.
Ela, agora, tinha um problema. Na melhor das hipóteses, seus
pais iriam deixá-la mais algum tempo com tia Nádia para continuar estudando
mais um pouco, não seria fácil. Jorge contava os dias para a formatura da
filha. Queria ela de volta.
Foi neste clima que Samirinha ficou sabendo da novidade.
O Contrato
Samirinha conhecia seu povo, suas tradições. Só mesmo pela
personalidade forte e liberal de sua mãe, ainda não estava casada com um primo,
e, agora, esta história do casamento.
Seu querido pai. Enlouquecido com a ideia.
Sua mãe. Tinha lavado as mãos.
Sua irmã estava casada, filhos, tinha sua família.
Giardini. Na dele, antropologia. Em São Paulo!
Sua vez. Uma hora ia chegar mesmo.
Que venha o príncipe!
Quando o primo voltou com o contrato, claro, tinha um monte
de letras miúdas. As vantagens para os Naffah estavam até melhores, mas
Samirinha ficaria praticamente incomunicável nos próximos anos. Teriam notícias
uns dos outros, mas o sigilo era indispensável. Para própria segurança de
todos. O príncipe era muito rico.
Abriram uma conta para Samira, num banco esquisito de São
Paulo, colocaram um bom dinheiro, deram-lhe um cartão para as despesas
imediatas. Ela gostava de computadores, o primo lhe trouxe um laptop novinho,
do melhor.
Nada disso animou Samira. Estava mesmo muito decepcionada com
todos. Entendia suas razões, mas, até o último minuto, esperou que alguém
tomasse uma atitude.
Nada, ninguém teve coragem de dizer que aquilo era um
absurdo, que ela era mais importante para eles. Nada.
Impressionante como o grupo se perfila ao lado do que parece
correto. Cada um tem medo de se queimar. “Imagina, falo mal deste casamento, dá
certo, serei execrado”. Nenhum olhar para a pobre Samirinha, embrulhada para
presente.
Ela até pensava, alguns anos sem contato, seria um alívio.
E lá se foi Samirinha rumo ao seu destino.
Jorge ficou a contar seus treze dinheiros.
Dona Samira arrependeu-se de sua omissão, nunca mais
recuperou sua alegria de viver.
Carol tinha seguido seu destino.
Eli espalhou-se pela casa.
Abbottabad
– Abbot...seiláoque bad, que nome, só pode ser coisa ruim,
bad.
O humor de Samira estava péssimo, nem chegara ao deserto e já
praguejava como um condutor de camelos.
O primo a acompanhara até Islamabad. Ele recebeu sua parte no
trato e não podia mais acompanhá-la. Questões de segurança.
Quer saber? – pensava Samira – este cara é um artista, levou
até Dona Samira – aquele monumento de sabedoria – no bico, recebeu o dele e
partiu. Tenho mais é que aprender com ele. Ideia, objetivo e classe.
Ninguém se apresentou, Samira seguia quieta, sentada no banco
de trás. O irmão mais novo dirigia a perua, o mais velho parecia mudo. Seguiam
pela estrada poeirenta.
Samira fecha os olhos, toda a aquela luta, aquela união para
isto. Para todos, a glória. Para ela, um vazio enorme. Procura se distrair.
A viagem com o primo foi agradável, ele era mesmo muito
polido. Esta etapa de perua já não estava bem como ela tinha planejado, mas
enfim. Costumes.
Fecha os olhos e imagina a perua chegando num castelo enorme!
Pare, este castelo é o da Bela Adormecida. Ok, de novo. Um grande acampamento com
tendas enormes, tapetes maravilhosos, archotes de fogo. Melhorou. Ela é
recebida por escravas Núbias. Pare de novo, não existem mais escravas Núbias.
Por senhoras árabes encarregadas de banhá-la em leite de cabra. Credo, pare de
novo, que nojo. Um banho de sais e óleos que perfumarão sua pele. Será que tem
condicionador? Seu cabelo não passa sem. Depois a vestirão, colocarão flores em
seus cabelos e a levarão para conhecer o príncipe. Nada mal! Valeu, seu Jorge.
Que viagem! Estamos no século vinte e um, claro que vamos para um hotel cinco
estrelas onde o príncipe tem uma suíte. Ele deve ter as mulheres dele, uma
secretária que cuida de tudo. Também não. Deve ser um destes condomínios que a
gente vê na internet, com lago artificial. Sei lá.
Estão entrando na cidade, Samira acorda de seus pensamentos e
olha as colinas surpreendentemente verdes e sorri, parece Marília. Quando
chegam mais perto, que Marília, que nada. Uma cidade mixuruca, nenhum prédio,
cadê o hotel cinco estrelas, cadê o condomínio?
Passam direto pela cidade, param para comprar pão. Comprar
pão? Ela, uma princesa? É, comprar pão.
O irmão mudo, que depois ela descobriria que se chama Arshad,
desce. Ela e o outro irmão, Tariq, esperam no carro.
Seguem mais um pouco, passam por casas simples na periferia.
Param em frente a um muro alto, uma casa grande, que mais parecia uma prisão.
Homens armados com metralhadoras abrem o portão e deixam a perua entrar.
Param no meio de um corredor fechado, mais metralhadoras,
entram num pátio, galinhas, cabras, uma bagunça.
Meu Deus do céu! – pensa Samira – fui raptada por mercadores
de escravas. O que você fez comigo, meu pai?
Entram na casa, Samira é recebida por uma mulher e uma
menininha, cinco, seis anos, que limpa o nariz escorrendo na saia da mãe e olha
curiosa para os cabelos da recém-chegada.
Mostram o quarto onde ela deverá ficar e a deixam para que se
ajeite, mais tarde voltariam para buscá-la.
Samira ainda não se recuperou do susto. Meu Deus, meu Deus! O
que aconteceu comigo? As janelas têm grades. Lá fora, está escurecendo, as
luzes começam a acender. Faz frio.
Procura recompor-se, não há o que fazer. Não dá para imaginar
o que vai lhe acontecer. Tenta confortar-se, afinal foi um primo, um parente
indicado por sua vó, que intermediou a combinação. O negócio, melhor dizendo.
Não pode ser tão ruim.
Passa um tempo que parece enorme, trazem-lhe uma bandeja com
uma refeição simples. Um copo d’água, pão, azeitonas, coalhada seca, berinjela
com óleo de gergelim. Nada que não conhecesse. Não era a mão santa de Dona
Samira, mas dava para comer. Para ela, a hora do almoço já tinha passado, eram
oito horas de diferença no fuso horário.
Era tudo muito estranho, não a tratavam bem. Um hóspede numa
casa árabe era um rei, era assim que tinha aprendido. Também não a maltratavam,
era aquela tensão constante que a assustava.
Mais tarde, vieram buscar os pratos e lhe disseram para
dormir, amanhã falariam com ela.
Falariam! Quem?
Samira era muito inteligente, viva, sua cabeça era treinada
para pensar, horas jogando gamão com o pai na loja, a escola, a faculdade, os
computadores.
Árabes não perdoam gente lenta.
Yalah – rápido –, menina.
Tchala! Não, não era boba.
Abre sua mala, liga seu laptop.
Nada, nenhuma rede ao alcance.
Não é possível! Em Tupã, haveria quatro ou cinco, aqui nada.
Olha para as paredes, uma tomada, um interruptor, mais nada. Nem um mísero
ponto de telefone.
Coloca o computador de lado e passa a mãos pelo rosto. O que
fazer?
O computador entra no modo salva tela, aparecem as fotos.
Ela, sorrindo, os sobrinhos, tia Nádia.
Fecha o laptop e desaba em prantos.
Chora, chora, não consegue dormir. O fuso.
Quando finalmente dorme, é acordada.
Já é dia.
Sempre pode piorar
Sempre aquele afobamento, aquela tensão. Pedem para que
Samira arrume-se rapidamente, Yalah!
Lava o rosto, arruma-se um pouco. Elas a revistam de novo, é
levada pelos corredores, entra no quarto. Tem uma cama, recostado sobre vários
travesseiros, está lá. Bin Laden!
Samira tem um riso. Isso, um sorriso de nervoso, ela é assim.
Caralho!
Bin Laden também fica sem jeito, sorri.
A cabeça de Samira roda, quase cai, meu Deus do céu, que
porra é essa?
Com um gesto, Bin pede que saiam, quer ficar a sós com
Samira.
– Samira! – ele começa, ela mal reconhece seu nome na boca
daquele homem.
– Desculpe – ele continua. – Não pude recebê-la ontem como
deveria. Minhas dores me matavam. Estou medicado, mas ainda não estou bem.
Samira ainda está atônita.
Ele continua com aquela fala pausada, olhando nos seus olhos
com aquela barba comprida e aquele olhar messiânico. De peixe morto, na
verdade.
– Minha vida tem sido uma luta permanente, sempre fugindo,
sempre me escondendo, estes últimos cinco anos, você deve imaginar, foram os
piores. Passei tempo demais nas cavernas, sinto dores horríveis em todo o
corpo.
Bin percebe que a jovem não está entendendo nada, continua
falando.
– Sente-se, por favor. Sei que é difícil para quem mora no
ocidente entender a nossa causa. Disseram-me ter ouvido você falar com simpatia
sobre nosso povo. Sei que você nasceu em Damasco.
– Simpatia... Mas três mil pessoas mortas...
– Eu sei, eu sei, leva um tempo para entender, espero que
você não se feche completamente para nossos ideais, nosso Deus. Você já deve
ter percebido que não estou em condições de assumir uma nova esposa,
principalmente linda e jovem como você. Não que eu não tenha recursos, me falta
é saúde.
Meu Deus, o que será de mim? – pensa Samira.
– Você conhece nossos costumes, um homem pode ter tantas
esposas quantas puder sustentar com dignidade. Não é como imaginam, o homem só
dorme com sua preferida, as outras, já fizeram seu papel de mãe, tornam-se
sábias conselheiras e ajudam a cuidar da família. Agora, minha mulher é Amal, a
quinta. Ela deve ter lhe recebido.
– Mas...
– Precisávamos de um motivo para trazê-la, todas as nossas promessas
serão mantidas, mas precisamos de você para uma missão muito importante. Para
todos os efeitos, você é minha prometida, todos a tratarão com o respeito que
merece. Somente Amal, o Doutor e eu sabemos toda a verdade. Estes dois já me
deram provas de absoluta lealdade e acredito que ainda farão mais. Espero que
você conserve este segredo pela sua própria segurança. De qualquer maneira, não
espere muita simpatia de Amal, ela está segura de sua posição, mas você sabe
como são as mulheres. Por favor, sinta-se em casa, nossa vida é modesta porque
o importante é nossa luta. Hoje, não posso continuar, qualquer esforço piora
meu estado, amanhã conversaremos mais, desculpe.
O homem fecha os olhos e suspira.
Samira sai do quarto.
O Plano
Nos dias seguintes, Amal explica a Samira o que esperam dela.
A situação estava ficando insustentável. Com vinte e cinco
milhões de dólares de prêmio pela cabeça do marido, o mundo era cada vez menor.
O Doutor achava que a única rota de fuga possível era o
Brasil, especialmente o interior de São Paulo.
Estavam em pleno desenvolvimento, a chegada de um grupo de
imigrantes não despertaria muita atenção.
Estavam acostumados com árabes, faziam parte do povo, a
imigração e miscigenação tinham sido importantes.
Paradoxalmente, era o único lugar do mundo onde excelência e
deslavada corrupção podiam conviver.
Não faltavam hospitais e médicos, Bin precisava ser tratado e
depois passar por uma cirurgia plástica importante. Ele ainda se recusava a
aceitar a ideia de mudar de rosto, gostava de sua imagem, mas era a única
saída. Passava horas olhando vídeos de sua própria imagem, parece que queria
guardar na memória como tinha sido.
Samira tinha tudo de que precisavam. Um passaporte
brasileiro, um nome honrado, uma conta bancária e era perita em computadores,
internet, estas coisas.
Começariam com remessas modestas de fundos para a conta de
Samira; aos poucos, comprariam algumas propriedades. Enfim, preparariam o
terreno para a mudança.
A maior parte disso deveria ser feita por Samira, via internet.
Os irmãos mensageiros eram de toda a confiança. Agora, fora armas, seus
conhecimentos eram parcos.
Uma vida nova
Samira não era mulher de se abater, refletiu muito sobre sua
situação.
O plano deles era mesmo simples. Quanto a ela, logo percebeu
que se tornaria a chave do cofre e que seria vigiada de perto, muito perto.
Foram muito cuidadosos na colocação, esperavam que um dia ela
entendesse realmente o que era o Girad, que fizesse aquilo tudo pela fé em
Deus. Mas Samira sabia que, na menor indiscrição de sua parte, ela e todos os
Naffah passariam para a história como mais alguns mártires da Guerra Santa.
Para quem tinha derrubado as Torres Gêmeas e um pedaço do
Pentágono, isto seria brincadeira de criança, não tinha dúvida.
Também não conseguia imaginar o que seria dela quando
conseguissem o que queriam. Estes malucos nem pareciam se preocupar com isto.
Tinham toda a confiança que ela, em breve, estaria totalmente engajada à guerra
santa, seria um deles. Ela sabia que isto não ia acontecer e que estaria em
grande risco.
Paulatinamente, disseram, para não levantar suspeitas, ela
tinha algum tempo. Por outro lado, a saúde de Bin estava cada vez pior, teriam
que mudar logo. Ai, meu Deus.
Samira conformou-se, pelo menos temporariamente, com sua
sina, era fazer o que queriam. Manter-se viva. Depois de três mil inocentes,
uma a mais, uma a menos não deveria fazer muita diferença para eles.
Por razões de segurança, a única comunicação da casa com o
exterior eram as saídas dos irmãos para as compras. Não tinham telefone,
televisão e muito menos internet.
No mundo de hoje – pensava Samira. Será que isto não acabaria
levantando suspeitas? Uma casa daquele tamanho, sem telefone?
Todos os dias, Samira, vigiada de perto por Amal e pelos
irmãos, juntos saíam na perua. Enquanto Arshad fazia as compras, os outros
ficavam no carro, protegidos pelos vidros escuros.
Samira então procurava uma rede de internet que pudesse
invadir e começava a navegar. Mudavam de posição e de rede para não levantarem
suspeitas.
Aquilo demorava um pouco, Amal rezava, Tariq sempre parecia
estar em outro mundo. Samira usava todos os recursos no laptop para baixar
vários arquivos ao mesmo tempo e gravá-los. Mais tarde, iria trabalhar com
eles. Recebeu as senhas de algumas contas da organização e começou a fazer as
transferências. No começo, elas eram monitoradas pelo Doutor, distante dali,
ele acompanhava tudo pela rede.
Depois de algum tempo, Samira integrou-se àquela estranha
comunidade. Eram todos muito reservados e cuidadosos, seguiam suas vidas.
Era de impressionar a fé daquelas pessoas, viviam com uma
espada sobre suas cabeças. Não fazia a menor diferença, não perdiam uma noite
de sono, encaravam cada dia como uma benção.
Não queriam estar em outro lugar, nada mais do que aquela
vida simples. As mulheres cuidavam da casa.
Para mostrar-se útil, ela se ofereceu para cuidar das
galinhas, gostava disto desde criança. Também mostrou seus dotes na cozinha,
seu frango refogado, bem corado, com molho grosso de cebola e alho, fez
sucesso. Ela aprendeu a comer com as mãos.
E o tempo foi passando.
A doença
Bin só piorava!
Os recursos eram limitados, tinham tentado tudo que era
possível, amostras foram mandadas para exame. Não achavam nada, não era
reumatismo, artrose, artrite, gota, nada. Nenhuma bactéria, nenhum traço de
vírus.
As dores pioravam a cada dia.
Samira estava cada vez com mais medo. Medo de mudarem de
repente e ela sobrar, medo que ele morresse de repente, o que seria dela então?
Passava cada vez mais do seu precioso tempo na net, visitando
sites sobre saúde e avanços na medicina. Não podia ser uma doença comum ou já
teriam encontrado. Começou a procurar terapias alternativas.
Encontrou várias referências, algumas em sites aparentemente
confiáveis, ligando o problema de dores musculares a infestações por fungos.
Tinha tudo a ver. Anos nas cavernas escuras e úmidas.
Alimentação deficiente, pouca proteína, queda de resistência.
Aprofundou-se neste assunto. Era novidade, a comunidade
médica estava cética, mas existiam vários testemunhos a favor.
Aparentemente, as colônias de fungos aderidas às paredes do
intestino acabavam deixando a parede permeável. Toxinas escapavam do trato
intestinal e iam depositar-se no tecido muscular, causando as dores.
Mesmo que a explicação não fosse esta, valia a pena uma
tentativa.
Falou com Amal, que lhe contou:
– Pode ser, quando Bin ainda estava nas cavernas, teve
coceiras e tomou antimicótico. As dores realmente diminuíram. Depois de algum
tempo, o remédio começou a fazer mais mal do que bem, intoxicou o paciente.
Era um sinal muito bom, continuou procurando.
A dieta era relativamente simples e sem risco. Eliminar tudo
que fermentasse com facilidade, nutrisse os fungos, como açúcar, farinha,
leite. Matar os fungos de fome.
Sobravam para comer as proteínas e as verduras, além dos
curativos, alho, gengibre e óleo de coco.
Ela tinha que convencer seu paciente. Achava difícil dizer
para aquele nobre guerreiro que ele simplesmente estava enfestado de fungos.
Começou comparando o corpo humano com um campo de batalha,
isto chamou a atenção do árabe.
– Neste campo, a batalha nunca cessa – dizia ela. – A cada
novo dia, os microrganismos do bem combatem os do mal e vice-versa. Quando
estamos felizes, fazemos as coisas certas, os bons começam a ganhar, ficamos
saudáveis; do contrário, ficamos doentes.
Bin achou que aquela metáfora também tinha algo a ver com a
sua própria luta, mas se sentia muito mal, estava pronto para experimentar
qualquer coisa, tamanha sua dor.
Como previsto nas prescrições, logo no começo do tratamento,
os sintomas pioraram, era a revolta dos fungos, depois foram paulatinamente se
abrandando.
Todos ficaram muito gratos à Samira, até mesmo Bin, muito
reservado, chamava a jovem. Gostava das histórias que ela sabia contar do
Brasil, das pessoas, as anedotas.
Os planos da viagem para o Brasil arrefeceram-se, a urgência
diminuiu, estavam se acostumando com aquela aparente segurança.
A vida seguia seu curso, as somas transferidas eram cada vez
maiores. Por segurança, passavam o dinheiro, a custódia dos títulos, de um
banco para o outro, para dificultarem o rastreamento.
Aproveitando a habilidade de Samira, elaboraram operações
cada vez mais complexas.
Samira montou uma grande planilha com aquela movimentação, só
assim conseguia acompanhar a cabeça prodigiosa de Bin.
Ele não sabia dos quebrados, mas tinha o grosso de cada
operação rigorosamente guardado em sua cabeça. Nenhuma anotação.
As únicas distrações de Samira eram Safiyah, filhinha de
Amal, e as galinhas.
– Tia Samira, faz em mim um cabelo igual ao seu?
– Claro, meu amor, vem cá com a tia.
Ela então lavava os cabelos da menina, penteava com um pente
grosso, prendia dos lados, sobre as orelhas, ficavam até parecidas. Lembrava-se
dela mesma pequenininha em Bauru, nos braços de Dona Samira, começava a chorar.
– Que que foi, tia, por que está chorando?
– Nada não, meu anjo, a tia que é boba. Lembrei-me da minha
mãe.
Samira pediu autorização para construir uma armação mais
alta, dentro do galinheiro. Igual ao da casa de seus pais, o sobradão de Tupã.
Achava que as galinhas sentir-se-iam mais seguras dormindo empoleiradas e
dariam mais ovos, criariam mais. Árabes não entendem muito de galinhas.
O galinheiro ficava encostado no muro nos fundos da
construção. Só tinha uma porta de entrada, era o único lugar que não precisavam
ficar vigiando a moça. Dali, ela não tinha para onde ir. Concordaram, lá foi
ela com ferramentas e tábuas cuidar de sua empreitada.
As galinhas dormiam sobre um estrado antigo, parecia resto da
obra, improvisado para elas. Samira começou limpando e desmontando aquilo.
Eram várias madeiras unidas por uma travessa, tudo pregado,
não dava para mover. Começou a tirar os pregos e soltar peça por peça, tempo é
que não faltava.
Lá pelo meio da retirada, descobriu que, na laje de piso,
havia um buraco. Deve ter sido uma entrada ou saída de materiais, água, não se
sabe o quê. Ficou escondido pelo trambolho de madeira, não foi fechado no final
da obra.
Com muito cuidado para não chamar a atenção, olhou lá para
dentro, dava no canal que passava nos fundos da casa.
Seu coração veio na boca, meu Deus do céu, era uma saída.
Agora não adiantava nada, era sair dali, ser recapturada e sabe-se lá o que
aconteceria com os seus.
Arrumou as tábuas tapando a saída, deixou duas soltas, o
suficiente para que pudesse escapar se houvesse uma oportunidade.
Mais alguns dias, concluiu o poleiro. O conjunto ficou ainda
mais pesado do que já era, escondia completamente a saída. Só ela sabia quais
as tábuas soltas.
2011
Bin, recuperado, livre das dores, tornou-se outro homem, era
um dínamo.
Esqueceu o perigo, só pensava na grande e apoteótica ação
para comemorar os dez anos do atentado de onze de setembro.
Samira tornara-se seu braço direito. Depois da cura, confiava
totalmente na jovem. Talvez a antiga ideia do casamento pudesse ser retomada.
Ela, por sua vez, sentia-se cada vez mais acuada.
Não podia comunicar-se pela internet, mas lia as notícias
internacionais.
Da mesma forma que Bin queria um evento majestoso, os
americanos empenhavam todos os seus recursos na captura do líder árabe.
Aquilo uma hora ia acabar acontecendo.
Seu “querido” pai tinha vendido sua filhinha por uma dúzia de
camelos, imagine o que não fariam pela recompensa de vinte e cinco milhões de
dólares oferecidos pela cabeça do terrorista.
Na verdade, todos sabiam disso, o alerta era total, a guarda
foi redobrada, dormiam todos prontos para o pior. Vestidos, armados e alertas.
Não seriam capturados, muito menos vivos.
Os planos estavam se concentrando no ataque contra os trens.
O modos operandi era mais ou menos o mesmo, não seria tão
espetaculoso como a queda das torres gêmeas, mas poderiam fazer um grande
estrago.
Os trens americanos são bastante rápidos e grandes, toda
aquela massa, multiplicada pela alta velocidade, resulta num potencial de destruição
enorme.
Também são muito seguros, é quase impossível um trem
chocar-se de frente com outro, o sistema tem diversas alternativas para cada
erro.
Tudo tinha ficado mais difícil.
– Estes americanos ficaram paranoicos – reclamavam –, é
segurança para todo lado!
Pediram a Samira para baixar um vídeo.
Tinha passado na TV. Reconstituíram um grande desastre
ocorrido anos antes.
Uma balsa chocara-se com uma ponte, minutos antes da passagem
de um trem de alta velocidade.
A ponte tinha sido construída para ser giratória, deixar os
barcos passar. O choque da balsa numa das pontas girou a ponte.
O desastre foi monumental. Era isso! No lugar da balsa,
homens-bomba.
Samira fazia o que lhe ordenavam, ela lutava por sua vida...
Mesmo assim, pensar que pudesse fazer parte de uma atrocidade destas corroía
sua alma.
Aquela parecia uma noite como as outras, estavam todos
recolhidos para dormir.
Samira acordou com o barulho ainda distante dos helicópteros.
No primeiro tiro, levantou de sua cama e começou a correr. Todos corriam sem
saber bem o que fazer. Amal vai ao encontro de Bin, sabe que ele é o alvo. Olha
por uma janela e vê Samira segurando o xale e correndo para o galinheiro.
– Esta brasileira é maluca – murmura para si mesma –, ainda
bem, acho que ela está começando a me ameaçar. Quando souberem que, numa hora
destas, foi cuidar das galinhas, será motivo de risadas para todos. Tchala!
Samira, no escuro da noite, no meio da confusão afasta as
tábuas, escondidas pela armação que construiu, entra no buraco e sai na vala,
fora da casa.
Caminha junto ao pequeno fio de água em direção às árvores.
Quando chega ao bosque, o clarão da explosão de um helicóptero ilumina o céu.
Os tiros cortam o ar. Era mesmo um ataque para valer, dificilmente haveria
sobreviventes. Corre mais um pouco entre as árvores e chega à rua.
As pessoas estão saindo das casas para ver o que acontece.
Junta-se a um grupo que corre para longe do combate, chega à rua principal.
Entra no primeiro ônibus que passa, vai para Islamabad, uma
benção.
Enfia uma mão no bolso, acaricia primeiro seu passaporte
brasileiro e depois seu cartão de crédito.
Passa a outra mão no pescoço e segue um cordão que prende seu
cartão de memória, a planilha com as operações e todas as senhas. Só Bin e ela
sabiam daquelas contas.
Aconteça o que acontecer, nos próximos dias, todos estarão
muito ocupados se recompondo.
Provavelmente, para todos os efeitos, ela será viúva de um
homem muito importante, todo muçulmano deverá zelar por ela.
Samirinha terá tempo para encontrar um lugar seguro e
aproveitar o resto da vida como uma mulher livre e rica. Muito rica.
ISBN 978-85-914195-2-4