A Vaca Maninha



Uma história de amor, leve e divertida. Numa moderna fazenda, duas jovens subjugadas pelo ambiente masculino, inspiradas pela Vaca Maninha, discutem seus problemas e descobrem suas reais necessidades. Popular no campo, a maninha é vaca que assume o papel do touro. A sexualidade segundo o olhar do geneticista, acostumado a olhar seus animais livre do tabu e do pecado.




A Vaca Maninha


GUSTAVO HOMSI
A VACA
MANINHA

1ª edição
São Paulo
Gustavo Homsi
2012

© 2012 Gustavo Homsi

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
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H754v Homsi, Gustavo, 1953 -
                A Vaca Maninha / Gustavo Homsi;
                revisão Tulana de Oliveira.
                São Paulo : Edição do Autor, 2012

                ISBN 978-85-914195-0-0
               
                1. Literatura Brasileira —Romance.
                 I. Título

                                                CDD B869.3
                                                CDU82-31
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para
TULANA
...a senhora dos sonhos...

Liberdade
Aula Prática
Mais um dia
O Coice
A Lida Continua
O Baile
Um dia de liberdade
A Safra
O dia da Maninha
O Feriado


Liberdade

– Águia 4, responda por favor, aqui é São Paulo.
– Prossiga, São Paulo, aqui é Águia 4, na escuta.
– Checagem de rotina, pode me dizer o código da missão?
– 358.
– Ok, entendido, obrigado. Tudo bem com vocês?
– Tudo tranquilo, daqui a pouco teremos contato visual com o Presídio de Riolândia, nossos “passageiros” estão colaborativos, devemos terminar a missão no horário e sem problemas.
– Por aqui, o dia também está calmo, o tempo não passa, bem que eu queria estar por aí passeando de helicóptero.
– Bom, não podemos mesmo reclamar, o tempo está ótimo, acabei de sobrevoar a cidade onde nasci, é só uma vila, mas eu gosto daqui, você sabe como é. Não?
– Claro que sei, também sou do interior, aqui está preto, acho que teremos mais uma daquelas chuvas no final do dia, vai ser um horror.
– Meu amigo, gostaria que você tivesse a nossa vista, já choveu um pouco, o pasto rebrotou verdinho, está a coisa mais linda, estamos sobrevoando a Fazenda Liberdade, parece um jardim. O mato, o rio as represas, o gado todo branquinho, coisa mais linda!
– Puxa! Acho que vou tentar a academia, fazer o curso de piloto.
– Também não se anime muito, a gente estuda, estuda e depois fica aqui. Baldeando traficante pra lá e pra cá. Um desperdício.
– É! É da profissão, chato mesmo. Bom, pior pra estes manés que vão amargar uma cana brava lá na Riolândia.
– Puxa, saiu uma camionete da sede da fazenda, vai pra vila numa velocidade! Esta hora da manhã... Deve ter acontecido alguma coisa.




Aula Prática

Juliano, montado, quase dormindo em cima do cavalo, aquilo era muito chato. Nos próximos meses, no começo e no final de cada dia, faça chuva, faça sol, feriado, dia santo, ele estará ali, circulando entre as vacas. Sua tarefa, verificar quais delas estarão no ponto para inseminação.
Não era complicado, depois de anos na lida, os peões conhecem cada vaca, arrumam apelidos para elas. Difícil é achar um caboclo de responsabilidade e disciplina; todo dia ali, uma hora de manhã, uma hora de tarde.
Juliano nasceu na fazenda, filho do antigo administrador, técnico agrícola, substituiu o pai, que já morreu. É o homem de confiança de Juvêncio, o proprietário.
Hoje está fraco, nem dez mostrarão cio. Uma ou duas já foram inseminadas, mas voltaram; isso é ruim, sinal de que não enxertaram. Mas tudo bem, o começo é mesmo meio devagar.
– Jurandir – grita para seu companheiro –, olha lá, tem um rufião [animal orquiectomizado, destinado a descobrir no campo as fêmeas que estão no cio e que serão posteriormente inseminadas] em cima daquela do chifre quebrado, pega o número dela.
O peão vai anotar o número e Juliano escuta o barulho do ônibus escolar que entra na fazenda. Já estavam esperando, é a turma do Colégio de Nova Gênova, todo ano eles vêm visitar a fazenda.
– Jurandir, junta a vacada, já deu a hora, tem mais nada não, vamos descer e apartar as viciadas.

– Bom dia, professora Manuela, falamos por telefone, não é mesmo? Bom dia pessoal! Bem vindos à Fazenda Liberdade. Meu nome é Mariana sou especialista em produção de ruminantes e responsável pela área de reprodução e melhoramento aqui da fazenda. Esta turma parece mais animada que a do ano passado! É isso mesmo?
– Ééééééé! – respondem os adolescentes.
– Muito bem, é sempre um prazer recebê-los aqui. Basicamente o que fazemos é usar os princípios da genética para dar uma ajuda à mãe natureza, apressando a seleção natural e torcendo um pouco seu rumo, a nosso favor. Vamos começar a visita pelo laboratório.
– De quem é esta foto? – pergunta Mariana.
– Da Mirtes! – responde um gaiato.
– Joãããão! – repreende Manuela, a professora. – Depois vamos conversar.
– De uma vaca campeã – responde a chata da Mirian.
– Muito bem – diz Mariana –, este é o nosso objetivo, conseguir vacas assim, pescoço pequeno, traseiro grande, quem sabe por quê? Menos você, João. Ninguém sabe? Simples, as melhores carnes estão no traseiro, alguém aqui gosta de carne de pescoço?
– Nãããão!
– Também não queremos uma muiiiito grande, elas comeriam muito. Existem muitas outras características que buscamos, tais como precocidade, feminilidade, habilidade materna e a sua capacidade de transmitir estas qualidades para as gerações futuras. Então, quando uma vaca é pequena, usamos o sêmen de um touro...? – pergunta Mariana, apontando para o maior touro num cartaz com vários reprodutores.
– ... grandão?
– Boa, turma. Acho que vocês entenderam o espírito da coisa, alguma pergunta?
– Mariana – pergunta João –, esta coisa de seleção natural, feliminidade, funciona também com gente?
– Claro – responde Mariana sem perder o jeito –, este assunto é apaixonante, até tenho uma teoria que...
– Mariaaaana – interrompe Juvêncio, que chega. – Moçada, é um prazer tê-los aqui na Liberdade, espero que aproveitem a visita.
– Mariana, minha filha – continua o fazendeiro –, estamos começando as inseminações, se quiserem vir para o curral, será interessante. Depois teremos um lanche na sede.
– Obaaaa!
Os estudantes seguem Juvêncio, que, todo orgulhoso, vai mostrando a propriedade, explicando tudo.
Manuela puxa discretamente Mariana pelo braço e ficam um pouco atrás do grupo.
– Mariana, que teoria é esta que seu pai não deixou você contar?
– Ora, bobagem, sabe como é gente mais velha.
– Bom, me conta, sou professora de biologia, acho que posso suportar.
– Tenho pensado em várias possibilidades, por exemplo, você não sente tesão quando beijam a suanuca?
– Nossa, que pergunta!Sinto, sei lá, acho que todo mundo sente, não?
– Mais ou menos. E se mordem um pouquinho?
– Credo, Mariana! Estou ficando até arrepiada, acho que sim, por que isso?
– Então, nas cavernas, os homens não eram exatamente gentis, muito menos nossas antepassadas. Imagine a situação do brucutu, a única maneira de ele conseguir transar, seria deitá-la de costas, um pé em cima de cada pé, uma mão em cima de cada mão. Certo?
– Sei lá, estou cada vez pior.
– Bom, ela ainda poderia lhe dar umas cabeçadas, então, a única coisa a fazer seria morder o pescoço dela com força e penetrá-la.
– Credo, Mariana, para com isto, seu Juvêncio estava certo!
– Então – continua Mariana, rindo –, as que conseguiam conviver com isso, ou melhor, as que até gostavam, tinham mais chances de procriar e tornaram-se nossas tatataravós, herdamos isto delas.

– Muito bem, pessoal – chama Mariana, que se adianta, ainda sorrindo, deixando Manuela perplexa. – Quem quer ajudar na inseminação, quem tem coragem de segurar o rabo desta vaca? Este é o Juliano, técnico agrícola, administrador da fazenda e que ainda se diz meu noivo.
A vaca na verdade já estava completamente contida no equipamento, com o rabo amarrado para cima.
Juliano já tinha tudo preparado, enfia o braço, enluvado e lubrificado, até o ombro, dentro do ânus da vaca, para guiar a sonda que enfia na vagina.
Rapidamente, deposita o sêmen no útero, retira a mão e massageia a vulva da vaca.
Os estudantes assistem entusiasmados; para alguns, também filhos de gente da terra, aquilo não era uma grande novidade, mas, de qualquer forma, a Liberdade era uma fazenda modelo.
O restante do rebanho, no piquete ao lado do curral, parece também assistir à aula.
João tanto aprontou que acabou caindo num monte de estrume, gargalhada geral, acabou com a aula. Juliano o leva para o vestiário; o resto do grupo vai para a sede da fazenda.
Sobem a escada e, na varanda, está Dona Maria Pia, que vem enxugando a mão no avental.
Ela é mãe de Juliano, esposa do antigo administrador. Maria Pia ajudou a criar Mariana depois que a mãe dela morreu prematuramente.
– Crianças, todos lavando as mãos – fala Maria Pia. – Deixei uma toalha limpinha na pia da varanda, depois venham comer. A Mariana falou muito? Seu Juvêncio ralhou com ela?
Era uma mesa enorme, tinha pão de queijo, bolo de milho, queijo fresco, leite, café, sucos, refrigerante, frutas.
A classe estava meio tímida para começar, quando chegam João e Juliano, que abraça e beija Maria e ataca o pão de queijo com vontade, a galera finalmente acompanha.
Juliano junta-se ao grupo de jovens, comendo e conversando animadamente.
Manuela, em pé, encostada numa das pilastras da varanda. Com uma mão na altura da cintura, segura o cotovelo; com a outra mão, segura um gomo de tangerina colorido e perfumado perto da sua boca vermelha. A posição dos braços, ao mesmo tempo esconde e realça seus seios fartos e arredondados dentro do discreto decote de uma blusa branca, que realça sua pele queimada do sol. A luz manhã acende as mechas claras do seu cabelo comprido.
Juvêncio, ao seu lado, não sabe o que fazer para agradá-la, pavoneia-se e conta vantagens, coisas do seu tempo.
Mariana sai com Maria Pia para ver um problema na cozinha, quando volta, percebe o riso maroto no rosto dos meninos do grupo com Juliano, que está corado.
– Mariana! – chama um dos estudantes. – Assim né, parece que, entre os rufiões, tinha uma vaca, Juliano começou a explicar, mas complicou ainda mais a história.
– Bem, responde Mariana – mordendo um pão de queijo –, ela veio para cá bezerrinha para produzir leite, para o gasto aqui da fazenda. Nossas vacas, zebuínas, produzem pouco leite e são muito bravas. Esta é holandesa, gado europeu, vocês sabem.
– Ma cumé quela foi pará nu meiu dus rufião, Mariana?
Juvêncio parou de contar lorotas para Manuela e franziu a testa.
– Bom – retoma Mariana –, quando chegou na hora de ela começar a criar, nada. Não emprenhava e, é claro, nada de leite. O destino dela era virar bife. Quando estava para ser descartada, nosso veterinário, vendo minha tristeza, disse:
– Esta vaca não procria porque tem muita testosterona. Já repararam como ela é grandona e brava? Avança, risca o chão! Vamos dar um pouquinho mais de hormônio, ela se masculiniza de vez e vira rufião.
– Deus du céu, uma vaca sapatão, Mariana!!!
– Jairrrrrr! – repreende Manuela.
– Mais ou menos isto – continua Mariana –, preferimos chamá-la de Maninha, este é um nome genérico para as vacas que não criam. Maninha.




Mais um dia

Juvêncio nunca foi de dormir muito, três, quatro da manhã já olhava para o relógio, esperando que fosse mais tarde.
Leu que o sono era mais importante que tudo, dieta, exercícios, mas acordava e pronto.
Compensava com uma soneca depois do almoço, quando dava.
Não que quisesse viver para sempre, ou tivesse medo de morrer, mas gostava de viver. Pensava na morte, no depois da morte. Começava a acreditar que não iria encontrar sua mulher no paraíso. Besteira, Juvêncio, não há nada depois da morte.
Bobagem pensar nisto, levanta da cama, vai ao banheiro, se olha no espelho.
Dormiu pouco, mas seu rosto não está assim tão mal, não fossem estas bolsas em baixo dos olhos, pareceria mais novo.
Achava que não ficaria careca, seu pai não o era, o pai da sua mãe também não. Bom, a testa estava cada vez maior, tudo bem, isto não importa.
A pele queimada, os cabelos brancos. Precisava fazer a barba.
Estava de bom humor, no espelho a barriga estava por assim dizer administrável, só dar uma maneirada. Era alto, quase um e noventa; menos agora, as pessoas vão abaixando com a idade. Era um sessentão enxuto.
Rico, honesto, bem sucedido, quem sabe a vida ainda não lhe reservasse uma surpresa boa?
Aprontou-se, fez café. Maria Pia ia fazer outro quando chegasse, ninguém podia entender como ele gostava daquele chafé, acho que era dos filmes de cowboy, gostava da imagem do vaqueiro tomando aquela canecona de café.
Levou a sua para a varanda, sentou-se, colocou os pés no murinho, tomou um gole do café quentinho, respirou fundo o ar fresco da manhã, uma sensação de bem estar percorreu seu corpo comprido.

O sol nasceu detrás do mato, o céu ficou vermelho, depois começou a brilhar meio amarelo. Não choveu, mas está tudo molhado, é o sereno. Parece que a natureza começa a acordar, primeiro os pássaros, depois as criações. Achou que deveria começar a pintar.
Juvêncio cresceu numa família de dotes, as irmãs estudavam piano, pintura. Depois, as coisas ficaram difíceis, vieram os tempos de crise, muita cultura e pouco dinheiro.
Por sorte, a mãe de Mariana encantou-se pelas suas maneiras refinadas. Ele era bonito e ela era rica. Não casou só pelo dinheiro, aquela mulher alta, de princípios rígidos, deu sentido à sua vida, antes cheia de promessas e poucas possibilidades.
Bom mesmo era no tempo do meu sogro – continua pensando. Aumentava o rebanho, tacava fogo no mato, plantava a braquiária, botava fogo de novo, brotava aquele capim verdinho, um cocho de sal, água tinha no rio e pronto.
No inverno, o gado emagrecia um pouco; no verão, engordava de novo, se virava.
Agora, tem que ter um monte de gado num pedacinho de terra, produzir comida e guardar para o inverno. Boi virou derivado de petróleo, é diesel para transportar e arar, nitrogênio para adubar, credo!

Meu Deus – pensa Juvêncio –, onde anda minha cabeça?
No fundo, no fundo, tinha era outra coisa que ficava indo e vindo no seu pensamento – Manuela.
Poderia até não admitir, mas ela tinha impressionado. Claro, ela tinha a idade de sua filha, nem pensar em nada. Por outro lado, ele tinha tanto para dar e ela, tão bonita. Parecia não ligar a mínima para sua idade, continuava ali, com aquele seu cheiro gostoso, aquela boca maravilhosa, aqueles seios...
– “Se eu queria enlouquecer, esta é minha chance, esse é o romance ideal” – cantou baixinho –, estas músicas grudam na cabeça da gente. Que bobagem.

– Bom dia, cowboy, caiu da cama?
É Mariana, que aparece de shortinho e camiseta, meio dormindo, espreguiça-se, curva-se, abraça o pai pelo pescoço e beija ele na bochecha.
– Maria Pia chegou, está fazendo um café decente pra nós, o senhor vem tomar?
– Estou é com fome – responde Juvêncio.
– Como sempre, né. Vou me trocar, já venho.

Mariana entra de cabeça no chuveiro, lava os cabelos curtos com um xampu, sem perfume, tem alergia a abelhas, não gosta de facilitar.
Enxuga a orelha e olha para o espelho. Sai detrás da toalha, fica na ponta dos pés, olha melhor.
Ela é uma mulher alta e magra, a pele é branca e lisinha. Vira um pouco de lado, tem bunda, não é aquela buuunnnda, mas tem, é claro que tem. Olha os seios, bonitos, levantadinhos, não são grandes, mas são pontudos e os mamilos são rosados, nada mal.
Levanta o seio um com a palma da mão, pensa em por silicone, ontem os homens ficaram babando pela Manuela – acho que não deveria ter contado aquela história para ela, acabamos de nos conhecer, coitada, ficou pasma –, aquilo, sim, é que são peitos. Mas, não, silicone não, não ia combinar comigo.
Sacode os pensamentos da cabeça, veste uma calcinha branca de algodão, hoje vai ter que montar. Um tope bem firme, que segura bem os peitos, camisa polo, bordada com a marca da Liberdade, calça jeans, bota sem salto, cinturão com fivela de prata, lembrança da excursão para o Texas. Escolhe um boné que ganhou num leilão de cavalos, chique, bordado com o nome de um garanhão quarto de milha... Papai comentou que aquele cara tava a fim de mim. É. Ele não ia mesmo me dar este boné assim de graça, tonto...

Mariana já tomou café, hoje estava bom, ainda tinha umas coisas do lanche de ontem. Tanta coisa boa e a tal da Manuela só quis uma mexerica, que chata.
Leva uma caneca de café para o escritório e senta em frente ao computador, abre a planilha de controle da vacada, aquilo tem sido sua vida nos últimos anos. Só ela entende aquilo, algumas vezes até se perde, foi acrescentando conexões com outras planilhas, bancos de fotos, controles estatísticos, um rolo, mas funciona.
Ela espalma as duas mãos sobre o rosto e passa os dedos sobre as sobrancelhas, é um tique que repete antes de fazer algo difícil ou complicado.
Hoje até que está fácil, só precisa verificar quais vacas foram cobertas, exatos vinte e um dias atrás; as que voltarem ao cio, obviamente não terão emprenhado. Na primeira vez que a vaca volta, recebe uma nova inseminação; se voltar de novo, só terá outra chance se tiver uma boa desculpa.
Bom, aqui estão, pega o rádio e chama Juliano, que já deve estar no meio do rebanho.
– Bom dia, meu gato.
– Bom dia, princesa, dormiu bem?
Antes que ela comece a passar a relação, Juliano se adianta:
– Má notícia, lembra da “4642”, a Orelha Cortada? Ela voltou. Maninha está em cima dela, seu pai já tinha dito que se ela voltasse ia para o descarte.
– Que pena, estou vendo aqui, esta vaca pariu muito tarde, um bezerro macho, grandão, acabou de desmamar, como ela está?
– Tá meio magrona, mesmo.
– Vou falar com papai. Quer anotar o número das outras?
– Manda.
Mariana olha sua mesa, a papelada é enorme, planilhas para a associação, registros, inscrições em leilões, exposições.Ave Maria, ela pensa, bons tempos os do meu avô, um monte de vaca, alguns touros. Eles faziam o que tinham que fazer, cresciam, engordavam, mandavam para o frigorífico e pronto. Minha avó era uma sinhazinha. Tenta se imaginar com um daqueles vestidos com rendinhas e botões, bordando num bastidor com as outras mulheres, começa a rir sozinha, volta ao trabalho.

No pasto, Juliano dá por encerrada sua tarefa e segue para o curral, o gado vem atrás dele, Jurandir vem fechando a fila e tocando uma ou outra vaca que para e tenta comer um brotinho no corredor.
Seu cavalo vai sozinho, Juliano lembra que de noite sonhou com a Manuela. Meu Deus – pensa –, se a Mariana desconfia disto, sou um homem morto.
Não lembrava direito, tinha alguma coisa com ela, professora, e ele, aluno, sei lá.Lembra daquela calça jeans justinha que ela estava usando, a botinha de salto, que bunda, meu Deus, que bunda!
Ai que tesão, sentiu que estava muito excitadoem cima do cavalo. Acho que estou ficando louco – pensou.
Às vezes, ficava cismando, será mesmo que queria casar com Mariana?
Uma vez ousara comentar com sua mãe, escutou um sermão.
– Casamento é coisa séria, não tem nada com estas bobagens que você fica ouvido destas duplas sertanejas.
Ela deve mesmo ter razão, filhos, fartura, uma vida tranquila, querer mais o quê?
Bom mesmo devia ser no tempo do avô da Mariana, era famoso na região, não tinha uma menina nova que chegasse em qualquer bordel que não fosse primeiro para ele. A esposa ficava em casa, cuidava da filharada, ele lá no bem-bom.
Estas histórias devem ir aumentando com o tempo, nem devia ser tudo isso.
Eu é que não brinco com a Mariana, ela é durona!
Como seria com a Manuela? Acho que eu é que nem ia pensar em outra mulher, ia ficar dia e noite com ela, ai meu Deus, que delícia!
 Hoje seu Juvêncio queria conversar sobre o programa de suprimentos. Aquilo começava com uma planilha. Mariana colocava a necessidade de alimentos do rebanho. Começava a fazer contas.
Quanto colocar de adubo nos pastos, quantas toneladas de capim, quanto de cana, de milho, de girassol. Quanto vai ser armazenado para o inverno, quanto compraremos de bagaço de laranja, de resíduo de cervejaria, mais um monte de coisas que faziam sua cabeça girar.
Juliano escutava aquilo tudo, dava uns palpites e sabia que, no fim, tinha mais é que cuidar de tudo e improvisar um pouco, nunca era como na planilha.

De noite, Juliano ficou para jantar na sede, com Mariana e Juvêncio. Frango bem refogado nos temperos, molho bem escuro, a carne soltando dos ossos, arroz branco e farofa de abobrinha. O assunto girou, falaram das novidades da vila, do telejornal, virou, virou até que Juvêncio disse:
– Achei muito simpática, a nova professora.
– Simpática! Sei – ironizou Mariana.
– É! Simpática sim, não tem assim... a sua eloquência, mas é educada, se comporta bem – respondeu Juvêncio.
Juliano sentiu que pisavam em terreno minado, o menor descuido seria fatal.
– E o senhor, seu Juliano! Não pense que não vi você olhando pra bunda dela, homem é mesmo tudo igual, nunca vi – Mariana estava mesmo nervosa.
Juliano é um homem simples, sério, se tivesse que falar alguma coisa, era para mandá-la calar a boca. Não queria fazer isto e para ser sincero, sentia um pouquinho de culpa, tinha olhado mesmo! Todo mundo tinha olhado! Limpa a boca com o guardanapo e olha para Juvêncio na expectativa que ele o salve. Juvêncio até tenta, mas só piora.
– Minha filha, dê uma chance à moça, claro que você ainda é a mais linda de Nova Gênova, Manuela acabou de chegar, coitada! Está longe da família, veio assumir o cargo de professora, assim, de última hora, quase no final do ano, precisa de nossa ajuda antes que desista.Como a outra professora.
Maria Pia escuta a discussão e entra com a sobremesa, manjar branco, o doce preferido de Mariana.
– Manuela! Manuela! – Mariana está possessa. – Não acredito, ela acabou de chegar, vocês já sabem mais dela do que de mim, me desculpe Pia, hoje não posso comer sobremesa, estou gorda. Boa noite, papai; boa noite, Juliano, com licença – Mariana joga o guardanapo na mesa e sai.




O Coice

Juliano acordou um pouco mais cedo neste dia, estava esquisito, não sabia dizer o porquê, não tinha nada de errado... esquisito, só esquisito.
A explosão da Mariana fazia parte, daqui a pouco, ela iria chamá-lo pelo rádio, “Oi, meu gato!”. Tudo ficaria bem.
Olhou as vacas, fez as inseminações de acordo com a tabela de acasalamento; cada touro, cada vaca escolhidos antes da estação.
Estava tratando um machucado numa novilha, a manhã estava fresca, tudo calmo, Mariana não tinha chamado, mas isto acontecia, ela deveria ter outras coisas para fazer. Mulher é assim mesmo – pensa Juliano.Deixa ela, tromba, quanto mais se alisa, mais ela cresce.

Mariana também não dormiu bem, tinha sido infantil, ciumenta, por quê? Não era seu feitio.
Usou suas prerrogativas de filha única para ficar até mais tarde no seu quarto, viu o noticiário, ficou enrolando, estava com um pouco de vergonha dos homens.
De repente, Maria Pia entra desesperada no seu quarto, aos prantos:
– Mariana, Juliano teve um acidente do curral, acode ele, pelo amor de Deus!
A moça sai correndo. No curral, Jurandir corre para ela.
– Mariana do céu, Juliano levou um coice na cara, acho que ele morreu!
Juliano está caído ao lado do brete, desacordado, o rosto coberto de sangue, um ferimento feio na boca, o corte sobe do lábio para o nariz.
Maria Pia levanta as mãos para o céu.
– Pia, me dê seu avental, me traz água e um pano limpo. Jurandir, vá pegar uns colchonetes, traga mais um companheiro e a minha picape, rápido – assume o controle Mariana.
Limpa o nariz de Juliano, tem esterco, sangue, pele, está feio mesmo. Escuta a respiração de Juliano, consegue escutá-la. Tenta acordá-lo em vão.
– Cadê meu pai? – grita Mariana para os peões que vêm chegando.
– Saiu cedinho, dona Mariana, acho que foi na oficina.
Acomodam Juliano na carroceria da picape sobre os colchonetes. Mariana segura a cabeça dele sobre seu colo, já todo manchado de sangue, continua estancando a hemorragia, abre a boca de Juliano, limpa o nariz, ele não pode parar de respirar.
– Pia, tente achar meu pai pelo telefone, descubra onde ele foi, manda ele pra Santa Casa de Nova Gênova.
– Rápido, Jurandir, toca esta camionete.
São dez quilômetros de terra, oito de asfalto, os dezoito quilômetros mais longos da vida de Mariana.
Ainda no caminho de terra, o sacolejo despertou Juliano, que balbuciava coisas desconexas com a boca cortada:
– Marra a perna dela Jurandir, segura...
Aquilo cortava o coração de Mariana, ela segurava a cabeça do noivo inconsciente e perturbado. Chorava. Por que tinha maltratado ele na véspera, assim do nada? Ele não tinha dito uma palavra. Olha para o alto e pede: – Meu Deus do céu, me perdoa, se ele sair dessa, faço qualquer coisa.

De longe Mariana viu seu pai, que já esperava na entrada da Santa Casa, a médica ao lado e uma maca. Juvêncio estava lívido.
Levam Juliano para dentro do hospital, Juvêncio pergunta:
– Como ele está? O que aconteceu afinal?
Mariana está coberta de sangue e de lágrimas, desmonta nos braços do pai.
– Ele está querendo acordar, falou coisas desconexas, está muito machucado.

– Seu Juvêncio – Jurandir está desesperado, dói mais nele que em Juliano –, eu perguntei pra ele, quer que eu seguro a novilha, Juliano? Ele tava esquisito, caladão desde cedo, falô: “– Precisa não, Jurandir, vai lá pegar um frasco de iodo pra mim.”. Eu tava indo, vi ele abrir a portinhola de cima do brete, achei meio perigoso, mas a novilha é tão mansa, pensei. Daí, escutei o barulho, páh! Virei e vi. O Juliano levou a mão na boca, tentou sair do brete e caiu no chão, desmaiado. Pelo amor de Deus, seu Juvêncio, será se ele salva?

Uma irmã de caridade levou Mariana para se recompor um pouco, ajudou-a a se lavar, deu-lhe água com açúcar e um comprimido. Uma das enfermeiras emprestou uma camiseta limpa, quando voltou encontrou o pai e Jurandir, sentados na mureta, esperando.
Não adiantava ligar para Pia, não sabiam de nada, deveriam ter tocado direto para Rio Preto. Não, melhor parar aqui para os primeiros socorros, que agonia, meu Deus.
Finalmente, a médica saiu com notícias.
– Este rapaz é um touro, o golpe foi sério. Ele já voltou a si, lembra quem é, sabe onde está. Ainda está confuso, mas é normal. Radiografamos o rosto, tem uma pequena fratura no nariz, não é grave, quebrou um dente. Tenho que mantê-lo sob observação por doze horas, é praxe nos casos de batida na cabeça.
– Jurandir – disse Juvêncio –, pega meu celular na camionete, liga para dona Maria Pia e conta as novidades.
Jurandir se afasta, Juvêncio puxa a doutora e Mariana para um canto e diz:
– A senhora sabe que este menino é como se fosse um filho para mim, confio demais na senhora e por isto farei esta pergunta. Deveríamos levá-lo pra Rio Preto ou Ribeirão?
– Já contava com isto, acho que sim, Rio Preto é mais perto e lá poderão atendê-lo perfeitamente, uma tomografia nos daria mais uma segurança quanto à batida. Dei alguns pontos e coloquei um curativo de compressão para estancar o sangue, posso costurá-lo aqui, mas o ideal seria que isto fosse feito por um especialista em cirurgia plástica reparadora. Ele já está medicado com antibióticos, anti-inflamatório, antitetânica. Poderia ir amanhã se conseguirmos a ambulância da prefeitura. Querem fazer isto? Ótimo, vou fazer uma guia para o Hospital de Base de lá, é o melhor para acidentes.
– Doutora, quem é o melhor cirurgião de Rio Preto?
– Posso fazer uma recomendação. Vou juntar o prontuário com o que fizemos por aqui.
– Muito obrigado, doutora.
Mariana, que estivera calada, pergunta:
– Podemos vê-lo, doutora?
– Só por um pouquinho e não se assustem. Como eu disse, ele ainda está confuso, é natural, a batida foi feia.
Entram com a doutora até a enfermaria. Juliano já está limpo, deitado numa maca, o edema espalhou-se pelo rosto todo, os olhos estão vermelhos de sangue. Mariana segura sua mão, ele esboça um sorriso que se transforma numa careta de dor e fala baixinho, entre os dentes:
– Princessa, focê fai no CarnaVotu?
Só então Mariana repara na camiseta emprestada, um abadá, desaba em prantos.

Juvêncio voltou para a fazenda para acalmar Maria Pia, buscar umas coisas para Juliano, também estava bem abatido.
Mariana recusou-se terminantemente a sair dali enquanto não estivesse mais segura de que a batida na cabeça de Juliano não teria maiores consequências.
Estava um trapo, o remorso pela briga de ontem, Jurandir disse que o Juliano estava meio caladão pela manhã, a agonia, o calmante, não tinha comido nada, sentou-se de novo na mureta da Santa Casa, e ficou olhando para o final da tarde, que hora triste, meu Deus.

O tempo foi passando, ela sai um pouco do torpor em que se encontrava e vê Manuela subindo a rampa da entrada da Santa Casa.
Estava com o guarda pó de professora aberto, o cinto arrastando atrás dela.
– Oi – disse Manuela.
– Oi – respondeu Mariana.
Manuela sentou do lado de Mariana e ficou lá um pouco, até Mariana perguntar:
– Você ficou sabendo?
– Então, o João veio me contar, acabei minha última aula, a escola é aqui na frente, vi a picape da fazenda, depois vi você encolhidinha aqui, vim falar um oi. Como ele está?
– Foi muito feio, um coice é sempre muito violento, no rosto então, meu Deus! Ele é forte, está resistindo bem, vai sair dessa, amanhã deve ir para Rio Preto, operar com um cirurgião plástico, o rosto dele está desfigurado – as lágrimas jorravam dos olhos de Mariana.
Manuela passa o braço pelo ombro de Mariana e fica em silêncio enquanto a outra soluça. Ficam assim, enquanto o dia acaba de escurecer.
A enfermeira chefe sai e diz à Mariana que Juliano está mais desperto, já poderia tomar um analgésico mais forte e provavelmente dormiria até amanhã.
– Não vai comer?
– Não tem como, mas está tomando soro, vai ficar bem, a doutora cuidou disso antes de sair, ele poderá ser transportado amanhã, pela hora do almoço. Temos seus telefones, qualquer novidade, ligamos.
– Obrigada.
A enfermeira voltou para dentro do hospital e Mariana disse:
– Desculpe, a gente mal se conhece e eu já faço este papelão, pareço uma manteiga derretida.
– Desculpa do quê, menina? O João me contou que você é que salvou o Juliano, cuidou dele na vinda e tudo, eu é que peço desculpas, sou nova aqui. Apareço assim do nada. Sabe, vocês foram as primeiras pessoas que me receberam, foram tão gentis, isto é importante para quem está sozinha, longe de casa.
– Minha filha – responde Mariana um pouco mais relaxada –, deixa estar que você fez um sucesso tremendo lá em casa, os homens só falavam de você, teve até briga.
– Para! Que eu fico sem graça, seu pai é um encanto de pessoa, diferente dos fazendeiros que eu conheço, tão culto, charmosão. Seu noivo, supereducado, bonito... Coitado, desculpe, o coice, tenho certeza que ele vai ficar bem.
Mariana chora de novo.
Manuela, sem graça por conta do fora, destampa a falar:
– Não liga pras besteiras que eu falo. Coisa de loira, aliás, os homens da sua casa foram gentis comigo, mas fiquei mesmo impressionada com você.
– Como assim? – assoando o nariz, Mariana.
– Achei bacana você lá, super à vontade no meio daquele monte de homens falando de sêmen, essas coisas. Também tem aquela história que você me contou, assim do nada. Aquilo não sai da minha cabeça. Você é muito divertida.
A tagarelice de Manuela confortou Mariana, sentiu-se um pouco melhor. Ela tinha sido simpática numa hora difícil.
– Bom, agora é só esperar, acho que vou voltar para a fazenda, vou levar as novidades, Pia deve estar... Coitada, Juliano é tudo que ela tem. Quer uma carona?
– Quero, acho que é no seu caminho. Você fica sabendo onde eu moro. Vou te dar meu celular, se eu puder ajudar é só ligar.




A Lida Continua

Mariana madrugou, na verdade, nem dormiu direito, foi cedo ver Juliano no hospital, tudo parecia melhor, falou com a doutora. Juliano dormiu razoavelmente bem, respondeu positivamente aos testes de reflexos, perguntas, visão etc.
Os danos neurológicos estavam praticamente afastados, já tinham uma ressonância marcada de tarde no Hospital de Base.
Por outro lado, os cortes ainda precisavam de cuidados. A doutora tinha uma avaliação melhor, disse que, para ficar bom mesmo, provavelmente seriam necessários alguns enxertos de pele em duas ou três operações. A ambulância estaria disponível ao meio dia.
Juvêncio e Maria Pia acompanhariam Juliano a Rio Preto, provavelmente por semanas. Mariana ficou na fazenda, era a única com prática em inseminação, poderia manter as coisas funcionando na ausência de Juliano; a mulher de Jurandir já ajudava Maria Pia, ia cuidar da casa.
O dia foi difícil e arrastado, Mariana e Jurandir culpavam-se pelo acidente. Ela pela briga, ele por não estar por perto.
Provavelmente umas vacas ficaram para trás, paciência, iam ficar vazias mais um ciclo.
No verão é mais fácil cuidar do rebanho, as vacas pastam e pronto, não é preciso alimentá-las, só seguir o revezamento dos piquetes, não deixar que raspem o pasto.

As coisas foram se ajeitando na fazenda, Juvêncio telefonou.
– Minha filha, como você está? Tudo bem?
– Tudo e aí?
– Tudo bem. A ressonância não trouxe nenhuma novidade ao diagnóstico da doutora; quanto ao trauma, ele só precisa de repouso. Falei com o Dr. Antônio. Lembra do Fabinho, aquele nosso vizinho na fazenda de Goiás? Então, é irmão dele, imagina que sorte! Recebeu a gente muito bem. Está muito interessado no caso do Juliano, a doutora tinha razão, serão necessárias duas cirurgias, a primeira depois de amanhã. Aí na fazenda, tudo bem?
– Tudo em ordem, não se preocupe, beijo pra Pia, beijo pro Juliano, ele continua fazendo graça?
– Sempre.
Mariana desligou o telefone e olhou para o quadro na parede do hall. Era a ampliação de uma foto sua, capa da revista Quarter Horse, final do Campeonato Brasileiro em Bauru, primeiro lugar na prova de tambor.
Ficou com saudade daquela menina magrinha, montada naquela égua bonita. Seu cabelo era comprido, estava trançado e saía do boné por cima do ajuste. O boné, enorme, bordado com as letras da Liberdade estava firme na sua cabeça. Sua camisa era de manga comprida, preta com chamas vermelhas e amarelas, subindo da cintura e das mangas. Fivela de prata, calças justas e botas de avestruz.
O fotógrafo também foi muito feliz. O dia estava claro, no fundo um céu azul, brilhante. A foto foi tirada no exato momento em que Mariana contornou o tambor e retomava a velocidade. Usou o chicote, soltou as rédeas e a égua parece estar saltando para frente, saindo de uma nuvem de poeira que levantou no giro perfeito. O tambor parecia ter explodido.
O rosto daquela menina estava completamente concentrado, sua determinação absoluta. Completamente relaxada, tranquila.
Que dia de glória.

Nos últimos anos, Mariana não tinha montado muito, não dava tempo. Eram as comunicações, selecionar gado para os leilões, a pós-graduação, tinha quase esquecido como gostava da lida com os animais.
Os dias passaram. Seu cavalo, que até então estourava de gordo, lá parado, só comendo, começou a melhorar. Ela também voltava à antiga forma, sua musculatura estava se tonificando, disparava no meio do rebanho, Jurandir mal a acompanhava.
Um dia, Jurandir não aguentou, precisou falar:
– Dona Mariana, parece que a senhora tá mais esperta que o Juliano e olhe que ele é bom de serviço.
– Pronto Jurandir, ganhou o dia. Hoje você fará uma inseminação, você fez o curso, não fez?
– Fiz, dona Mariana, a senhora vai ver, sou bom nisso, seu Juliano é que não me deixa.

Mariana trabalhava muito, dormia com sono, comia com fome.
A fazenda estava nos trinques. Resolveu dar-se uma folga. Telefonou para Manuela:
– Hoje, acho que vou acabar o trabalho um pouco mais cedo. Você já foi à Pousada Nova, aqui no rio? Não? É bacana lá. Pensei que poderíamos ir de tardezinha, você fica conhecendo, a gente toma uma caipirinha, tem uma comidinha boa lá. Tudo bem, te pego às cinco? Combinado. Outro.
Mariana pediu ao Jurandir para dar uma limpada na camionete.
Tomou um banho bem gostoso, escolheu uma calça mais modelada, experimentou uma camiseta mais curta, sua barriga era lisa, nem uma gordurinha. Não gostou da blusa, preferiu uma polo mesmo, Manuela tinha dito que ela ficava bem, repetiu tudo igual, sem o cinto e só um sapatinho baixo no lugar da bota. Uma colônia suave, um pouquinho de rímel e brilho nos lábios.
Olhou-se no espelho, nada mal. Virou-se, o cabelo curtinho deixava ver uma pontinha que descia no meio da nuca branquinha.
Pontualmente às cinco da tarde, ela estava toda arrumada, camionete limpa, em frente da casa onde morava Manuela.
– Já vou! Estou quase pronta.
Mentira. Levou ainda bem uns dez minutos, finalmente lá veio ela.
Manuela tinha a cintura fina, tinha carne, mas não era gorda. De jeito nenhum! A blusa curta deixava de fora o ventre. É isso! Um ventre feminino, muito feminino. Era ela, Manuela. Queimada, cabelos loiros, brincos, pulseiras, salto, cores, tudo.
– Mil perdões. Não tinha uma roupa que coubesse, as mães dos alunos me paparicam, fazem brigadeiro, estou uma elefanta.
Mariana não gostou muito de esperar, tinha corrido tanto para chegar na hora.

O cenário era de cinema, o rio represado, muito largo, quase não dá para ver a outra margem.
O sol ia se escondendo e a lua já estava lá, cheia, grávida, maravilhosa.
A pousada estava vazia. O pessoal conhecia Mariana, fizeram festa para ela. As meninas acomodaram-se no deck, quase sobre a água.
Os pernilongos começaram a picar os pés de Mariana. Sempre de meias e botas, aquela pele branquinha era um banquete. Hoje não era seu dia, pensou.
Manuela tirou um creme da bolsa, colocou os pés de Mariana no seu colo, tirou os sapatos dela e passou o creme, enquanto falava:
– Meu pai levava a gente para pescar, tinha muito borrachudo, mordiam a gente, minha mãe ficava brava, aí ele passava óleo de cozinha em nós, tenho trauma até hoje. Faz pouco tempo, descobri que qualquer creme serve, eles também não gostam muito do perfume, vai passar, você vai ver.
E passou mesmo, a noite veio fresca, perfumada, passaram os pernilongos, passou o mau humor de Mariana, chegaram as caipirinhas.
– E a fazenda, como vai? Deve estar dando um trabalho doido, não? – pergunta Manuela.
– Tenho que te confessar uma coisa. Estou preocupada com Juliano, claro, sinto falta dele, do meu pai, da Pia, mas, Deus que me perdoe, estou adorando estes dias sozinha. Estou numa paz que você nem imagina.
– Como assim?
– Primeiro lugar, meu pai me deu um tempo. Parou aquela pressão. Porque sou filha dele, tudo tem que sair a cento e dez por cento. Agora ele sabe que está difícil, me cobra menos, dá tudo certo... Mas o pior não é isso.
– Tem mais?
– Tem. Quando eu vi o Juliano ali caído, você não sabe como ficou meu coração, meu desespero. Ele é meu irmão, meu companheiro.
– Seu noivo! – exclama Manuela.
– Então! Aí é que a coisa pega, isso que atrapalha. Como ele é meu noivo, tem aquilo de ele mandar em mim, sabe como é?
– Heloow!Você é a patroa dele.
– Sei que é difícil de entender, mas é assim. Todos esperam que eu faça coisas que lhe agradem. Como uma boa mulher. Eu já reparei, você faz isto espontaneamente, eu vejo que isto não te custa, na hora que a gente percebe, pronto, você já fez. Eu não tenho má vontade, eu juro, mas é difícil para mim. Essa coisa de patroa, também não é bem assim, papai parece moderno, mas não é.
– Conheço o tipo, o meu é igualzinho, posso ser o que eu quiser contanto que seja professora. Você tem razão. Eu é que não dou bola, até gosto, ele fica tão orgulhoso.
– Pro meu pai – continua Mariana –, o patrão tem que ser homem. Sem falsa modéstia, eu sou muito melhor preparada que o Juliano. Também sei montar, sei lidar com a turma, serei a dona da fazenda, mas não tem jeito. O patrão tem que ser o homem! Dá pra entender?
– Nem tento. Boa mesmo esta caipirinha, não?
– Ótima, vamos pedir outra.
– Farei um esforço, por você!!!
Pediram o jantar, a lua cada vez maior, amarela, perturbadora, o papo ia solto.
Eram diferentes e iguais. Manuela também vinha de uma família de fazendeiros, menos abastados, mas as terras estavam arrendadas para cana de açúcar, levavam uma vida bem confortável.
Manuela prestou concurso público, era a única maneira de sair de casa sem casar-se. Não fora exatamente a primeira colocada, o lugar mais perto que pôde escolher foi Nova Gênova. O tio estava mexendo os pauzinhos para removê-la. Primeiro tinha que cumprir algum tempo por lá, mas estava achando bom.
Elas pareciam amigas de infância, metade do tempo falavam as duas juntas e morriam de rir.
– Sabe o que é pior? – pergunta Mariana, já meio de pilequinho – o Juliano está superbem, semana que vem já volta, eu ainda não o vi, só falamos por telefone. Dizem que o tal doutor deixou ele melhor do que antes. Acontece que esta merda deste acidente parece que aumenta o peso do meu compromisso com ele. Parece que isto liga o Juliano a mim e à fazenda para a eternidade, isto está me enlouquecendo.
– Calma, amiga! Vamos conversar.
Mas Manuela continua:
– Meu pai, o Juliano, eles adoram aquelas vacas, não existe outra vida para eles. Eu também gosto, mas isto não é tudo no mundo. Fica uma puta grana empatada, trabalho, risco. No fim, ganharíamos mais dinheiro se simplesmente aquilo estivesse tudo arrendado para cana, como vocês fizeram. Poderíamos passar os dias aqui, sentados contemplando o rio. Cabe na sua cabeça?
– Bom, lá em casa fez toda a diferença.
– Esta semana estava na internet – Mariana está a mil –, tinha uma chamada para o Museu de Anatomia Comparada de Paris, já ouviu falar?
– Nunca.
– Então, eu também não, e nunca saberia se não fosse a internet. Sabe quando o Juliano iria para Paris? Never.
– Eu quero ir pra Paris! – diz Manuela, um pouco alegre.
– Foi no que eu pensei. Você é bióloga, ia adorar. Parece coisa do Indiana Jones, daquela época. Prateleiras de madeira escura, envernizada, com vidro. Tem uma sequência de pequenos esqueletos mostrando como os peixes tornaram-se pássaros. É uma loucura. Pensar que isto é do começo do século passado e eu ainda aqui, naquela maldita planilha, controlando se a filha da puta da 4348 voltou ao cio. Eu tô cheia, quero ir para Paris.
– Eu vou com você no Museu de Anatomia Comparada, gostei! Podemos comer uns crepes e fazer umas comprinhas?
– Claro que sim. Hoje nós vamos até pra Lua.
– Um brinde à Lua! Mariana
– Um brinde à Lua! Manuela.




 O Baile

– A patroinha parece que está meio cansada hoje? Este era Jurandir brincando com Mariana. Ele sabia que ela tinha chegado lá pelas tantas e pelo jeito que parou a picape, deveria ter bebido um pouco.
– Jurandir, para de me zoar, você está vendo que eu estou de ressaca, fala baixinho e corre lá ver o número daquela vaca que a Maninha está em cima.
E o Jurandir corria, estava adorando estes dias em que era o primeiro na fazenda, se desdobrava. Volta com o número e continua puxando prosa.
– Sábado é o baile da cidade, ganhamos convite, a Liberdade é patrocinadora. Será se o seu Juvêncio vem ou a senhora vai representando ele?
– Ainda não sei, Jurandir. Juliano já saiu do hospital, ainda está lá por conta dos curativos, está no hotel. Se correr tudo bem, segunda tira os últimos pontos e pode voltar. Não para trabalhar, é claro. Ficará de molho uns dias.
– Num guenta patroa, vai querer trabaiá.
– Não pode, Jurandir. Hoje ele está arrumando o dente, aquele que você achou no curral. Mandei para uma amiga minha que é dentista lá em Rio Preto. Estou com pena dele, do jeito que ele é caladão, ela fala pelos cotovelos, enche a boca da gente de chumaços e fica perguntando as coisas, a Simone, ela é muito divertida.
– Sei como é isso não, patroa, nunca fui num dentista. Sorri o negro Jurandir e mostra a fileira de dentes brancos e perfeitos. Sai voando para o meio da vacada.

Juvêncio vem mesmo para o baile, está louco para voltar, ver a fazenda, Juliano fica com a mãe mais o final de semana. Ele voltará para buscá-los.

O baile é assim mais para uma festa, no salão do clube. Sempre faz um calor infernal, a mesma luz negra e o globo de espelhos que está lá desde que Mariana se lembra.
Tem gente vestindo desde terno preto fechado a camiseta, o importante é a festa. Vem um conjunto bom, o mesmo de sempre. Juvêncio todo chique, com as roupas que Mariana trouxe do Texas. Conversa com o prefeito e com o dono da loja de produtos veterinários, presidente da câmara e candidato à sucessão.
Mariana chega com Manuela, que estava com vergonha de vir.Elas são o destaque da festa. Mariana com sua amiga – a professora bonitona – são um prato cheio para as fofoqueiras, que comentam:
– Puxa vida, mas é bonita mesmo esta tal de Manuela. O que será que ela veio fazer neste final de mundo?
– Sabe-se lá do que está fugindo. Cidade pequena – responde a amiga – é pequena porque ninguém quer morar lá!
Que coisa cruel, na verdade, as pessoas chegam numa cidade que começa para tentar algo novo, e conseguem. Chegam tão empenhadas e confiantes, que conseguiriam sucesso em qualquer lugar, mas ficam gratos e passam a adorar aquela cidade.
Para os filhos, não foi uma questão de escolha, nasceram lá. Escutam falar da cidade grande, querem conhecer. Alguns conseguem, fazem o caminho contrário ao dos pais e se dão bem pelos mesmos motivos.
Outros não, não conseguem crescer, construir uma vida própria, sair do ninho. Revoltam-se e passam o resto da vida maldizendo os que conseguiram.
Mariana é uma vencedora, poderia fazer o que faz onde quisesse. Voltou para casa pelo pai. Agora, vive o pior dos dois mundos, não tem o que custou a conquistar e sofre com um monte de chatos agourando seu sucesso.
Ainda bem que praga de urubu não pega em cavalo gordo – pensa Mariana, com um suspiro.
Manuela cumprimenta Juvêncio, agradece a acolhida na fazenda, lastima o acidente, enfim. O fazendeiro agradece o apoio que ela tem dado à filha:
– Nesta hora é que conhecemos os verdadeiros amigos.
Apresenta a professora para o prefeito. Ele já a conhece, o político se desdobra em rapapés para puxar o saco do fazendeiro.
As matronas locais, apertadíssimas nas cintas compradas pelo canal de ofertas da TV, vestindo seus tomara-que-caia azuis, rezam para que os zíperes resistam. O ódio no salão é de cortar com faca.
Faz anos que elas estão ali e aquela sirigaita – que acabou de chegar – é a imagem do conforto, parece que está em casa, ri, se diverte com a nata de Nova Gênova, que vadia!
– Meninas – fala uma das matronas, de ladinho para as outras –, vamos combinar, a tal da professora, sabe ser bonita. Não é magrinha como a Mariana, mas não sobra nada, o vestido cola nela como uma luva.

Do lado dos homens, nem se fala! O assunto é Manuela.
– Como é gostosa!
– Queria muito comer esta Manuela!
– Cara, vai ficar querendo. Acha! Aqui e Nova Gênova? Nem pensar. Numa viagem... Não digo nada. Aqui? Só casando.
– Também não é assim – diz o outro. – Você fala que tá apaixonado. Você é rico, bonito. Ela vai acreditar. Daí você dá um treino, e vaza!
–Gordo! Você é um gênio.

Faz muito tempo que Mariana aprendeu a conviver com isto, cumprimenta todo mundo, finge que se lembra de todos e vai indo.
Seu pai trouxe um uísque da sua coleção, um para ocasiões especiais.
O garçom trouxe uma caçamba com aquele gelo nojento e água mineral. Seja o que Deus quiser – pensa Mariana. Ela prepara um copo para Manuela, bebe um pouco do uísque puro e dá uma bronca no pai que já ia para o terceiro. Nunca fica confortável de vestido, era uma pena, estava muito bonita. Este até que ela gostou, Juvêncio trouxe de presente.

Olhava os casais dançando, todo baile era igual, incrível a autoestima do gordinho com a gordinha, sempre o mesmo rosto com rosto, a mão levantada, a bunda pra trás, como se aquilo fosse o balé russo.
Devo estar para menstruar, meu Deus, que mau humor – pensa Mariana.
 Manuela tinha escapado do seu pai e do prefeito. Agora estava literalmente cercada pelos bons partidos da cidade.
Tomou mais um gole de uísque e foi ajudá-la.
– Olá, cavalheiros, novidades? – pergunta Mariana.
– Nada, o de sempre. E o Juliano?
– Bem, graças a Deus, volta segunda-feira – responde Mariana.
– E a festinha! Teve boa? Disseram que alguém andou chamando urubu de meu louro lá na Pousada do Rio. Ressaca brava?
– Nada excepcional, parece até que vocês também não bebem – diz Mariana –, vai dizer que nunca tiveram ressaca?
– Claro, claro!
– Daquelas brabas mesmo, ressaca de medo, que você acorda com dor de cabeça, boca seca, corpo doído e mesmo assim sente tipo um tesão, tudo misturado?
Estavam acostumados com a Mariana, olham meio sem graça para Manuela, ela dá de ombros.
– Claro, claro!
– Então, dizem que isto é normal. Os homens que podem conviver com o desconforto, com a dor, têm maior chance de sobreviver, de terem mais filhos como eles. Somos todos seus tatataranetos.
O ego dos rapazes foi massageado e começa a inflar.
Juvêncio de longe olha pra aquilo, não ia dar certo, conhecia a filha, ela continua firme:
– Estas características genéticas às vezes são reforçadas pelo ambiente. A mãe tem muita coisa para fazer, só se ocupa do filho quando ele está doente. A criança associa a dor ao carinho da mãe, isto reforça o processo.
– Claro, claro!
– Finalmente, é por isto que os homens têm tesão quando estão de ressaca, e alguns têm muiiiito.
– Claro, claro!
– Então, o nome disso é masoquismo! – completa Mariana.
Uau! Os rapazes não têm onde enfiar a cara. Juvêncio olha para o outro lado, Manuela pega na mão de Mariana e diz:
– Vou retocar a maquiagem, você vem comigo? – arrasta a amiga.

Saem para o terraço, Manuela deixa escapar o riso, dá uma bronca em Mariana:
– Minha amiga, você é louquinha!
– Ah! Tô cheia destes caras, eles são muito infantis para o meu gosto, não vão crescer nunca. Peguei eles, não peguei?
– Você é doida. Quer dizer, eu adorei. Você não tem medo? Isto vai ter troco, você humilhou os caras.
– Não sei o que me deu, só queria acabar com eles.
– Que noite gostosa está aqui fora, estava derretendo lá dentro. Como tudo aqui é quente, a escola é um forno, cimento amianto, sei lá – reclama Manuela.
Mariana tem uma ideia:
– Lá na Liberdade é mais alto, deve estar uma delícia agora. Amanhã é meu último dia, de patroa, segunda-feira os homens chegam e eu volto para o trabalho chato, enquanto eles se exibem. Vamos para lá, tomamos mais umas e outras, amanhã você me ajuda, tenho que trabalhar um pouquinho, só um pouquinho. Depois vamos fazer um passeio, você gosta de montar?
– Montar? Você quer dizer...
– Cavalos sua tonta.
– Tô brincando – sorri Manuela –, bom, eu sei andar a cavalo, mais ou menos. De qualquer maneira, acho que se ficarmos aqui, isto só tende a piorar, aqueles cowboys devem estar tramando algo, melhor sumirmos. Você não vai levar seu pai?
– Ele é bem grandinho, sempre que tem festa ele acaba ficando por aqui, dorme na tia Cotinha, pelo menos é o que ele diz, e amanhã acho que já volta, vai buscar Juliano.
– Então, vamos!

A mãe de Mariana era muito jeitosa, pedira ao marido para aumentar um pedaço do terraço para fora do telhado da varanda. No meio deixou um pequeno círculo par acender o fogo; do lado, uma espreguiçadeira grandona.
Rapidinho, Mariana fez uma fogueira com as achas sequinhas do fogão de lenha da Maria Pia.
A lua estava menorzinha, deixava as estrelas brilharem naquele céu imenso. Longe da cidade, fazia até um pouquinho de frio. Mariana foi lá dentro e voltou com uma manta, uma garrafa de “Black”, uma de “Drambuie” e dois copos. Colocou só uísque no seu, misturou meio a meio com o licor no copo da Manuela. Manuela aconchegou-se com a manta e deu um gole.
– Que delícia, Mariana, você arrumou este uísque!
Mariana sentiu o calor, a presença de Manuela ao seu lado. Era incrível como ela falava demais nas horas certas e calava-se completamente nas horas mais certas ainda. Gostou do elogio, tomou um gole do seu copo, respirou fundo. O ar fresco da noite entrou pelo seu peito, ela sentiu uma tremenda sensação de bem estar, de paz. A Liberdade nunca lhe parecera tão linda.




 Um dia de liberdade

Manuela estava um pouco justa nas roupas de montaria de Mariana.
Encontraram Juvêncio esperando com sua canecona de café.
O acidente de Juliano, estes dias no hospital, tudo isto abrandou um pouco o velho coração do fazendeiro. E se Juliano tivesse morrido? E se fosse Mariana? Não, não teria nem mais um dia a perder com pequenas bobagens, eram boas para manter a disciplina, mas enfim.
– Bom dia, meninas, os rapazes casadoiros de Nova Gênova, entre os quais modestamente me incluo, ainda estão se perguntando onde foi que erraram!
Continua Juvêncio:
– Já sei, já sei! Aquele baile estava mesmo uma droga! A Liberdade deveria estar muito melhor. Aliás, a Liberdade está mesmo muito melhor. Temos mais um inseminador. Jurandir me contou as novidades.
Mariana – ainda meio dormindo – estava perplexa, achou que o mundo fosse cair na sua cabeça e estava tudo bem para Juvêncio.
E o pai continua:
– Minha filha, a esposa do Jurandir fez um café da manhã caprichado para vocês. Jurandir subiu com mais uns homens para ajudar. Eu vou acompanhar a inseminação e fazer as fichas. Queria ir até o pasto, mas, você sabe, minha coluna não me deixa montar. Os cavalos estão arreados, se você puder, por favor, dê uma passadinha no pasto das vacas. Manuela você está radiante esta manhã!
As duas – perplexas – foram tomar café. Manuela morde um pão de queijo, com a cabeça baixa, e olha para Mariana com cara de “o que aconteceu afinal?”. As duas ainda meio de ressaca, riem baixinho.
Mariana, como se acordasse de vez, olha para a amiga... Deus não desperdiçou nem um milímetro quando fez o rosto de Manuela. Ela devia ter um pouquinho de mouro, ou de onde viriam aqueles olhos, grandes amendoados, cor de mel? O nariz era pequeno, a boca não. Começava muito apertadinha nos cantos e fazia um bocão no meio, acho que era para caber naquele rosto pequeno. O cabelo era grosso e tinha aquela pontinha que entrava na testa – bico de viúva –, daí ele pendia ora para um lado ora para o outro. Ela tinha umas mechas mais claras no cabelo cor de mel.
– Quer saber? – diz Mariana. – Meu pai está diferente mesmo. Comprou um vestido novo para mim, aquele que eu usei ontem, muito na moda para ele mesmo ter escolhido. Também está bem cuidado, cabelo bem cortado. Nunca imaginei que ele pudesse passar tanto tempo assim longe da Liberdade. Ele gosta muito do Juliano, mas também não é assim. Aí tem.
– Você acha que ele arrumou uma namorada?
– Só pode ser.
– Solteiros de Nova Gênova! Danado esse seu Juvêncio.
– Ora, Manuela! Você não conhece homem? É tudo igual. Juliano e eu estamos juntos faz uma eternidade. Na cabeça dele, ele ainda é solteiro. Dá pra acreditar?
– Olha, Mariana, eu tenho que ser sincera. Quando estava namorando, não deixava, assim, de dar uma olhada nas possibilidades à minha volta.
– Claro, mas aí está certo! A mulher sabe o que faz.

O cavalo de Mariana era seu xodó, puro Quarto de Milha, neto do El Zorrero.
 Para Manuela, Jurandir tinha selado Jurema, uma égua meio sangue. Mariana tinha ganhado algumas taças em provas de tambor com aquela égua.
Elas foram para o pasto das vacas, Mariana muito à vontade, Manuela acompanhando.
– Bom dia, Jurandir. Quantas até agora?
– Bom dia, Mariana; bom dia, professora. Contei doze até agora, acho que é o que tem.
– Ok, meu pai me disse que vai acompanhá-lo na inseminação.
– A senhora viu que chique, eu de inseminador, trabalhando direto com o Sr. Juvêncio?
– Você é um gozador Jurandir, já que me dispensaram vou mostrar a fazenda para Manuela, está dando para passar na represa?
– Tá sim – e foi anotar o número da vaca em que a Maninha estava montando.
– Vamos Manuela?
– Nossa, Mariana, enquanto você conversava estava vendo os peões separarem as vacas, que agilidade com o cavalo, com que facilidade eles fazem aquilo.
– Bom, eu também não sou das piores, pra ser sincera, o cavalo faz quase tudo sozinho.
– Como assim? – pergunta Manuela.
– Cavalos são criaturas simples, como os homens. As instruções devem ser simples e precisas.
– Lá vem você de novo, Mariana!
– Estava olhando como você monta, enquanto subíamos. Não queria falar nada porque estamos passeando, quer umas dicas?
– Não sou homem, Mariana! Não ligo de você me dizer o que fazer ou como fazer. Se for bom pra mim eu faço, se não, eu não entendo.
As duas riem.
 – Olhe para mim, a boca do cavalo é sensível, o freio tem um sistema de alavancas, não é preciso força para parar o cavalo. Notei que, quando o seu cavalo corre, você fica com medo e tenta se firmar apertando a perna na virilha do animal. Isto é contraditório para o cavalo. Apertar ou cutucar a virilha, para ele significa que você quer mais velocidade. Se você quer parar, abra um pouco as pernas e puxe a rédea para você; se for preciso, coloque os pés para frente para ter apoio, assim, olhe. Experimente.
Manuela afrouxa a rédea, bate com os pés na barriga da égua, que sai correndo. Ela abre um pouco as pernas e puxa as rédeas, a égua para de chofre, ela quase cai pra frente.
Mariana corre para ela, mas Manuela está bem, levou um susto, já está rindo de novo.
– Por que ninguém nunca me contou isto antes? Que bárbaro, ensina mais.
– Agora, virar. Já combinamos que a rédea é o freio, certo? Muito bem, se você quer virar para a direita, não puxe as duas rédeas para lá. Deixe a mão esquerda parada, só use se você quiser diminuir a marcha durante a curva, aí você puxa um pouquinho. Abra a mão direita e deixe a rédea solta para o animal saber que é para lá que você quer ir. Dobre a perna direita um pouco para trás e empurre a barriga do cavalo para o lado de fora da curva. Olhe para mim, viu? Agora tente, com cuidado.
Manuela repete o que fez Mariana. Parece que sua perna empurrou o traseiro da égua para fora da curva. Giram no eixo.
 – Uauh! Que bárbaro! Quero fazer mais.
As duas disparam pelo pasto contornando as árvores e obstáculos imaginários.
Elas chegam à represa, o lugar é lindo, a taboa está florida, o capim ali perto é mais verde, a manhã mais fresca. Elas se sentam na sombra, os cavalos bebem água.
Mariana tem um cantil. Manuela dá um gole, um pouco de água escorre pelo seu pescoço. Limpa a boca com a mão e pergunta, marota:
– Que lugar bonito, você vem sempre aqui, namorar com o Juliano?
– Bem que eu gostaria, minha filha, mas aquilo é duro na queda. Hora de trabalhar, é hora de trabalhar; de comer, comer; de sair, sair; de namorar, namorar. Meu Deus, como homem é limitado. Será que não dá para misturar um pouco?
– Sei como é.
– Estamos toda hora juntos por aí. Custava ele me arrastar prum mato desses, arrancar minha roupa? Sei lá!
Manuela ri que se mata. Mariana embala.
– Sempre aquela coisa respeitosa, só falta pedir pra ficar comigo. Coitado, até que se esforça, quer me agradar, mas não sabe. Se eu tento fazer algo diferente, ele trava.
– Será que ele não fica com medo de te engravidar antes do casamento? Sabe como é – comenta Manuela.
– Nada, eu tomo pílula, sou super-regulada. Aliás, se fosse para ter um filho, tinha mesmo que ser com o Juliano. Ele gosta de mim, é confiável, jamais usaria este filho para me sacanear. Acho que daria um bom pai e no fundo, sei lá. Ele e a família vêm cuidando da gente desde sempre, nem seria justo que meu filho fosse herdeiro de outro, como você vê, está tudo certo.
– Então?
– Então que pra ter um filho, só precisava dormir com ele uma vez.. O que me apavora é ter que dormir com ele por toda a eternidade.
– Exageraaaada!

No final do dia Mariana foi levar Manuela para casa. Para ficarem mais um pouco juntas, param no trailer para comer um sanduíche.
– Mariana, você fala estas coisas, depois elas ficam na minha cabeça.
– Acha?
– Aquela coisa de dormir eternamente com o mesmo homem, quer dizer, da falta de jeito deles. Será que não estamos fazendo alguma coisa de errado, de quem é a culpa?
– Semana passada – diz Mariana –, li um artigo interessante, mostraram fotos de homens e mulheres nus para um grupo de homens e mulheres.
– Lá vem!
– Sério, não tinham como mentir. Todas as mulheres ficaram excitadas com as fotos dos homens e também com as das mulheres. A maioria dos homens só ficou com tesão pelas fotos das mulheres; uns poucos, só pelas fotos de homens.
– Peraí, Mariana, já estou te conhecendo. Você não vai fazer comigo o que fez com os caras no baile, vai?
– Nada, boba, mas eu fiquei pensando, voltei lá na idade da pedra.
– De novo!
– Os homens brigavam entre si, os mais fortes engravidavam as mulheres. Depois saíam por longos períodos para caçar. Dependiam uns dos outros, mas continuavam lutando contra as feras e uns contra os outros, pela liderança, enfim. Puro antagonismo.
– Homem é assim mesmo – comenta Manuela.
– As mulheres ficavam na caverna amamentando, cuidando das crias, das suas, das outras e delas mesmas. Não sabiam mais onde acabava a mãe, começava a filha, onde acabava uma e começava a outra, dormiam todas juntas. Foi neste tempo que aprenderam a gostar de afeto, beijos na boca, nos seios, carícias, intimidade. Agora, nós – as herdeiras destas mulheres – ficamos cobrando isso dos homens, coisas que eles nem imaginam. Coitados.
Chegaram os sanduíches.
Mariana colocou mostarda e atacou o seu.
Manuela olhava sem saber o que falar.




A Safra

A camionete de Juvêncio apontou no mata burro, todos correm para a sede.
Juliano voltou. Está um pouco mais magro. Seu nariz parece que ficou mais bonito, era meio pesado, está mais certinho. Uma barba curtinha esconde as cicatrizes. Os olhos ainda estão um pouco vermelhos, a boca um pouco inchada, as palavras ainda saem meio assopradas.
A primeira a abraçá-lo é Mariana, que veio correndo do curral. Maria Pia desce da camionete com uns embrulhos. As mulheres da fazenda fazem roda, ela está cheia de novidades da cidade. Também mudou o cabelo.
Juliano caminha até a varanda e senta-se. Todos estes dias de repouso, todo aquele sangue perdido, a cirurgia, está fraco, qualquer esforço o faz suar.
Todos contam coisas e fazem perguntas ao mesmo tempo, a cabeça de Juliano roda. Mariana afasta-se com o pai para dentro de casa.
– Divertiu-se com sua amiga? – pergunta Juvêncio.
– Sim – responde Mariana. – Alguma recomendação do médico?
– Não muitas, repouso e alimentação até que ele se sinta melhor. O que me preocupa mais é que ele não consegue se perdoar. Fica remoendo o acidente. Não admite ter feito essa besteira. Cansei de falar para ele. Estas coisas simplesmente acontecem. Acho que para o Natal ele estará bem.
Meu Deus! – pensa Mariana – já é final de ano, temos milhares de coisas para fazer. Natal é bom na Europa, aquele frio, todo mundo tem mesmo que ficar em casa, uma delícia. Aqui nós estamos no meio da safra, do acasalamento, que hora errada para festejar. Melhor São João.

O ar da fazenda, a comida da Pia fizeram milagres pelo Juliano, tudo foi voltando ao normal.
Plantaram milho e girassol. Quando as espigas estiverem no ponto e as flores abertas, tudo será cortado, triturado e compactado em grandes valas cobertas com lona, os silos. A fermentação manterá os alimentos até o inverno, quando parar de chover e os pastos voltarem a dormir.
Este ano, plantaram mais um piquete de grama, Mariana queria aos poucos substituir os silos por feno, no lugar de fermentar, secar o capim, como no Texas.
O ano escolar acabou e Manuela foi de férias para Lins, sua cidade.
Juliano ficou bom de vez e mergulhou de cabeça no trabalho, esqueceu aquela bobagem. Tirou a barba, esquecia o protetor solar, as cicatrizes ficaram mais escuras, fora isto, quase não dava pra ver.




O dia da Maninha

Era dia de vacina, passar todo o gado pelo tronco, aquilo começou cedo e não tinha hora para acabar. Era espremer uma meia dúzia de vacas naquele corredor apertado e aplicar a injeção. As vacas, claro, não colaboravam, era um sacrifício colocá-las lá dentro. Uma subia em cima da outra, trançavam as patas em posições aparentemente impossíveis de acontecer. Puxa o rabo de uma, tapa na cara da outra, uma luta.
No final do dia, o calor e a poeira eram insuportáveis, o cansaço começava a pesar. Tudo ficava mais difícil para os peões e para as vacas. Sempre tinha uma mais temperamental.
– Cuidado! – grita Juliano. – A Maninha vem junto e é brava!
Não deu outra, a vaca se estatelou no costado, enfiou uma pata para fora do cercado, caiu outra vaca em cima dela. Maninha quebrou a mão.
– Mas que merda! Justo a Maninha, que vaca burra. Ô meu Deus do céu! Corre tirar as outras de cima dela.

A consternação não podia ser maior, faz parte da lida, mas, enfim, um animal machucado é sempre uma tristeza. Ele não entende o que está acontecendo, fica te olhando assustado.

Juvêncio, que assistia calado, finalmente falou.
– Vamos lá, moçada, não tem o que fazer, separa ela ali na manga, dá uma água para ela beber. Juliano, telefone pro açougue da vila, tem o feriado, eles devem estar precisando de carne.
– Seu Juvêncio – tentou Juliano –, vamos tentar encanar, quem sabe ela cura, é a mão. Esta vaca é o xodó da Mariana.
– Perder tempo com isso não, Juliano. Entendo sua preocupação, mas você sabe que vai ser dinheiro, tempo e sofrimento jogado fora, animal machucado só vai mesmo arruinando.
– Mas... pro açougue?
– Ora, Juliano, esta vaca – perto das que o marreta manda para o açougue – está vendendo saúde. Holandesa! Gado europeu, Mariana não vive dizendo que é mais macio, essas coisas?
Virando para a turma ainda fala:
– Vamos acabar logo com esta vacina, agora ainda lembrei que esta semana tem este diabo deste feriado no meio, só pra atrapalhar.

E lá se foi a Maninha.

Bom, estas coisas são tristes, mas acontecem.
A peonada fica muito abatida, mas passa. Logo voltam todos ao trabalho.
Não existe nada melhor para a concentração do que entrar num curral cheio de vacas bravas e com chifres pontudos. Todos os pensamentos desnecessários somem como por encanto e volta-se à rotina.

A vacinação ainda durou todo o dia seguinte. As vacas que foram separadas para receber algum curativo ficaram para o feriado. Juliano cuidaria disso.




O Feriado

Mariana aproveitou o feriado para ver a amiga Manuela que tinha voltado. Recomeçavam as aulas.
Choveu de noite, limpou de manhã, estava um dia bonito, até fresco. Elas foram almoçar no Juvenal.
O Juvenal era dali mesmo, ele trabalhou uns tempos num tal de Barbecue, restaurante chique de Rio Preto. Voltou cheio de nove horas, cortes especiais.Angus pra cá, Angus pra lá; no fim, uma sorte, a cidade enfim tinha um restaurante.
Juvenal alugou uma casinha simpática em frente à praça, tirou quase todas as paredes, umas mesinhas na calçada, outras no quintal, na sombra de uma mangueira. Recebeu as meninas no maior rapapé.
– Quanta honra! As mais belas senhoritas da região no meu estabelecimento. Onde querem sentar, por favor?
Mariana e Manuela cumprimentam os rapazes na mesa da calçada, já tinham almoçado, estavam tomando cerveja.
– Aqui na calçada? – pergunta Juvenal. – Ali na sombra da mangueira? Claro, volto num minuto com nosso cardápio.
As meninas sentaram-se na última mesa, de costas para o muro, olhando o pátio sombreado. Ainda cumprimentaram mais umas pessoas nas outras mesas.
– Puxa, que gostoso! – fala Manuela. – Que bom que você veio me ver.
Mariana olhou para a amiga meio sem graça, ela era um pouco tímida com demonstrações de afeto.
Manuela estava com os cabelos brilhantes, lisos, presos e milimetricamente desarrumados. Um vestido florido, decotado, a barra mais para curta do que para comprida, ainda elegante. Usava um sapato de saltinho e ficava quase da altura de Mariana, que usava uma sapatilha, calças jeans clarinha e uma camisa branca de colarinho, bem justinha realçando seus ombros e a cintura fina, hoje tinha uma fivela no cabelo curto.
– Senhoras, por favor, desculpem a correria, o feriado me surpreendeu, mas já estamos dando conta de todos os pedidos. Logo vai ficar mais calmo, aqui estão os cardápios e aqui está o aperitivo da casa.
Sem perguntar, tirou dois copinhos de cachaça com mel de uma bandeja cheia deles e colocou sobre a mesa.
– Fraquinha, uma delícia! Experimentem. Já estávamos quase fechando a cozinha do almoço, mas é claro que vamos atendê-las primeiro. O prato do dia, como podem ver, é “entrecote”. Grelhado na brasa. Com salada de repolho roxo e branco, temperada à japonesa.
– Sei não Juvenal, contrafilé? Coisa de primeiro mundo. Aqui, carne, se não for picanha ou filé, só na pressão. Não queria um bife solado.
– Confiem em mim senhoras, volto num minuto, enquanto escolhem.
– Nossa, Mariana! Você sabe cada coisa.
De novo sem graça com o elogio, Mariana muda de assunto.
– Boa mesmo esta cachaça com mel, não?
– Uma delícia – concorda Manuela e insiste –, não tenho a menor aptidão para estes assuntos de homem, mas quando é você que está falando, eu até que gosto, você fala de um jeito que eu entendo.
– Boba. E aí, o que vamos comer? Este cardápio é uma volta ao mundo, pizza, hambúrguer, macarrão, quibe, tem de tudo.
– Sei lá, tem muita coisa, estou com preguiça de ler. E você, vai comer o quê?
– Acho que só experimentando o tal especial da casa.
– Quero igual – diz Manuela –, fico louca quando alguém pede algo diferente e vem mais bonito. Fica chato eu pedir bem passado? Eu quase desmaio se vejo sangue.
– Imagina!
Nisto, volta Juvenal com uma cumbuca, pepinos e cenouras cortados em palitos, bem fininhos, dentro de uma água salgada e bem gelada.
– O tira-gosto da casa e mais uma cachacinha, desculpa pela demora. Escolheram?
– Vamos experimentar o contrafilé, um bem e um mal passado – diz naturalmente Mariana.
– Excelente escolha – diz Juvenal, gira elegantemente e sai de cena.
– Este Juvenal é uma figura – diz Mariana –, que peça! Estes legumes estão mesmo crocantes.
– Sabe, ele me incomoda um pouco – continua Manuela –, vim aqui com o prefeito. Ele me trouxe para almoçar, demonstrar a enorrrrme gratidão da cidade por eu ter aceitado o cargo e caiu matando. Não dava pra acreditar, deve ser casado, ter filhos.
– Três.
– Babaca! Daí o Juvenal, eu acho que meio pra puxar saco dele, ficou me oferecendo um monte de coisas que eu não sabia o que era, esnobando seus “grandes” conhecimentos de cidade grande.
– Mesmo?
 – É sério. Gostei como você respondeu pra ele, firme, escolheu o prato e falou para ele que eu queria bem passado e pronto, ele não torceu o nariz. Me senti bem.
– Boba! Acha?
Estava tudo mesmo muito bom. Os últimos clientes foram embora, a tarde calma, silenciosa, o perfume do jardim, o cheirinho bom de comida.
Claro que uns goles não eliminam os grandes problemas, mas dissolvem os pequenos. Que deliciosa sensação de estarem juntas, nesta tarde preguiçosa.
– Senhoras, bem passado para Manuela, do ponto para menos para Mariana. Nossa salada japonesa. Na receita original tinha azeite de gergelim e shoyu. Acrescentei gengibre ralado e pimenta dedo de moça. Não quero elogios, por favor, a verdade. Uma taça de Carmenère, cerveja, refri, água mineral? Uma com gás e outra sem, perfeitamente.
A virada e a saída triunfal.
As meninas riam dele.

– Gostou da salada? – pergunta Mariana.
– Repolho continua sendo repolho, mas a mistura de cores está linda, enfeitou o prato, o gosto é mesmo diferente. E você, gostou?
– Estou pasma, a salada está uma delícia e o “entrecote”, então! Não sei onde o Juvenal arrumou esta carne, macia, suculenta, perfeita, me arrependo de não ter aceitado aquela taça de vinho.
– Pede boba, eu tomo um golinho, será que não é muito seco?

Comer junto é mesmo intimidade...

– Meninas, que tal?
– Meu caro Juvenal, tenho que dar a mão à palmatória, você realmente sabe o que faz. Manuela, que nem é muito de carne, olha só, comeu tudo. Aceite isto como nosso melhor elogio.
– Meu pai do céu, obrigado – teatral, o cozinheiro levanta as mãos –, meu talento reconhecido até pelas pessoas mais importantes, era tudo que eu queria. Uma sobremesa? Não, estão satisfeitas? Café? Não, claro. Eu sei, tira o sono. Imaginem, não, não, desta vez não tem conta, é a primeira vez que me dão a honra de sua visita, devo muito ao seu Juvêncio.
Volta com a bandeja.
– Meus amores, eu faço questão de oferecer um último licorzinho. De jabuticaba, aqui da casa. Este copinho é minúsculo, vou deixar a garrafinha aqui e vou lá pra dentro. Tenho que trabalhar no cardápio de domingo. Não tem mais ninguém no restaurante, mas, se precisarem de mim, é só chamar. Adoreeeei que vocês gostaram, voltem – quase uma pirueta e lá se vai Juvenal.
– Ma! – Manuela junta as mãos como se batesse palmas e continua. – Este cara é hilário, nunca me diverti tanto, que ótimo.
Mariana, tão boa em enfrentar as situações, cora. Com o cotovelo apoiado na mesa, serve o licor no copinho de Manuela.
Elas bebem um golinho, respiram. O álcool se evapora e espalha aquela sensação quente e confortável pelos seus corpos.
– Tin, tin ao Juvenal, nosso anfitrião, mago dos filés e dos licores – brinda Manuela.
Mariana toma seu gole, enche os copos de novo, sorri para Manu. Sua cabeça dá voltas, mil coisas passam ao mesmo tempo, sua mãe, que morreu tão cedo, sua vida como filha única, um pai que precisava de um filho. Tudo tão difícil, cada dia tinha sido uma luta, uma conquista. Agora, ela ali. Sabe-se lá por que, de repente, tudo fazia sentido, nenhuma dúvida. Seu coração bate muito forte, um calor sobe pelo seu corpo.
– Ei, Ma! Acorda, você está bem?
– Oh lindinha! Claro, desculpe, essa semana foi complicada, morreu uma vaca na fazenda, acho que o espírito dela passou por aqui.
– Que louco, acho que neste licorzinho não tem só jabuticaba.
– Para. É verdade. A Maninha, você lembra dela?
– Claro, coitada!
– A gente adorava ela, agora não sei, acho que ela baixou em mim.
– Ave Maria!
Mariana fica roxa, parece que vai ter um troço e fala, meio que pra dentro.
– Estou com vontade de avançar em você.
– Assim?!




ISBN 978-85-914195-0-0