Mariana, rica e bonita, fazendeira do sudeste
brasileiro, está atolada no trabalho e de casamento marcado. Uma foto de sua
mãe, triste, entediada e morta prematuramente pelo câncer, não lhe sai da
cabeça. Sua melhor amiga, deixada de lado, compromete-se com um político
esquisito que precisa casar. Só tem Regine, amiga da falecida, e o espírito
corajoso da Vaca Maninha para buscar uma nova vida.
Maninha em Paris
Um romance de
GUSTAVO HOMSI
revisão
Tulana Oliveira
Copyright
2013 by Gustavo Homsi
à
Tulana
... La Dame de Rêves ...
São João
Uma tora incandescente cai na enorme fogueira.
Fagulhas sobem ao céu, misturam-se com as estrelas nesta
noite fria de São João.
Juntam-se os fogos.
Na Fazenda Liberdade, a quadrilha vai começar.
Olha a cobra!
– Atenção, pessoal! O casamento!
Os violeiros arremedam a marcha nupcial e a noiva entra.
Manuela!
Seus cabelos dourados estão presos pela grinalda, mechas
claras contornam o rosto arredondado onde brilham seus olhos amendoados, da cor
do mel.
Ela estava bonita demais. As matronas, invejosas, insistiram
num toque cômico e improvisaram uma barriguinha de grávida sob o vestido;
afinal, era um casamento caipira.
O tiro saiu pela culatra, o vestido brilhante moldou a
bunda maravilhosa de Manuela, levantou a barra, mostrou seus joelhos perfeitos,
baixou o decote, mostrou um pouco mais dos seios fartos e redondos.
Uma matrona no ouvido da outra:
– Não tem jeito,
esta professora sabe ser bonita!
– Que vaca! – responde a outra.
Na hora de escolher o noivo, uma briga, todos os solteiros
de Nova Gênova queriam o papel. Para resolver a questão, Mariana escolheu seu
pai e lá vai Juvêncio, todo pimpão no seu terno de linho branco.
O dono da Liberdade até parece o velho coronel, Coronel
Cerqueira Franco, o genuíno! Bisavô de Mariana. Foi ele quem começou a
tradição, todo vinte e quatro de junho, uma baita festa.
Naquele tempo, Nova Gênova ainda era uma comarca, meia
dúzia de casas e uma venda no meio da imensa Fazenda Coqueiro. A terra foi
dividida para os filhos, depois para os netos. A sede ainda é a mesma, o terreirão
de café só foi conservado só por conta da festa. Ainda sobrou um belo pedaço de
chão. No lugar do café, vacas Nelore, só as melhores; produzem e selecionam reprodutores.
Juvêncio tinha dito à Maria Pia:
– Pia, este ano vamos caprichar! Temos muito que agradecer,
seu filho Juliano são e salvo do acidente, foi um susto e tanto.
– Virgem Santa!
– Um coice de vaca na cara não é brincadeira, graças a Deus
ele já está aí, fortão, até mais bem arrumado depois da plástica.
– Glória Deus, Senhor! Pode deixar, Seu Juvêncio, não vai
faltar nada, meu finado marido sempre dizia, “Seu Juvêncio adora o Juliano,
trata ele que nem a Mariana, sua filha, igualzinho”.
– Deixa disso, Pia, aliás, não sei por que estes dois não
aproveitam logo este festão e casam de vez. Já combinamos que deste ano não
passa, faz tempo que não tem uma criança nesta casa!
Seus olhos encheram-se de água, cada um disfarçou para seu
lado.
E a Pia caprichou, fornadas e fornadas de pão de queijo,
doces, biscoitos. Para completar, Juvêncio contratou Juvenal, o dono do
restaurante da vila, ficou encarregado dos espetinhos, da mandioca frita e da
cozida.
Juliano e Mariana ficaram com a barraca do quentão. Muito
gengibre fervido com limões, cravos, açúcar e cachaça da boa.
– Patroinha, bota
mais um aí pra mim que eu tô sem graça!
– Quando é que você já ficou sem graça, Jurandir? – brinca
Mariana. – Você está ótimo de padre. Só vou te dar mais um e veja se não fala
muita besteira na hora do casamento!
– Acha?! – Jurandir pega a caneca fumegante, sorri com sua
fileira de dentes brancos e mergulha na multidão.
O casamento foi um sucesso, Jurandir volta para tomar mais
um quentão. Mariana bota ele para trabalhar
no seu lugar com o seu noivo e sai para conversar com Manuela.
– Mariana! Eu adorei ser a noiva, que fofo seu pai, lá todo
compenetrado, este Jurandir é hilário! Sua festa é o máximo, parabéns – Manuela
cumprimenta e abraça a amiga.
– Imagina, para com isto. Você é que está linda – responde
Mariana, corada.
– Os rapazes me contaram que você é que recomeçou a festa
depois que sua mãe... Quero dizer, desculpe, não devia ter lembrado isso, logo
hoje.
– Não, não. Deixa pra
lá, na verdade, minha mãe é que era devota de Santo Antônio e São João, acho
que é por isso que eu não caso.
– Não casa porque não quer! Olha lá o Juliano, tá te
olhando, acho que é ciúme.
– Nada, tá é bebendo escondido com o Jurandir – Mariana
olha feio para os rapazes, depois se volta para Manuela e continua – dizem que
minha mãe se animava nesta época do ano, ela que cuidava da festa, daí resolvi
recomeçar, meu pai sempre me pedia isto. Quer um espetinho?
– Claro.
– Meninas! Quanta honra! O que vão querer? – Juvenal, no
rapapé de sempre.
As matronas levam Manuela para trocar o vestido, Juvenal
serve uma provinha da carne e puxa conversa com a anfitriã.
– Gostou do tempero? Boa esta carne, não? Seu pai
caprichou, uma novilha bem gordinha.
– Era boa mesmo, coitada, imagina, só no dia da vistoria,
descobrimos que ela tinha os cílios brancos, não foi registrada! Era uma
novilha linda, teve que virar espetinho, coitada.
– Bom, faz parte.
– Claro, no ano passado foi a Maninha. Acidente, coitada. Era
uma vaca holandesa, veio pra dar
leite, mas não criava. Machona!
– Uih! – brinca Juvenal, levantando os braços.
– Para com isso seu bobo, eu gostava dela, virou rufião.
Ela mostrava as vacas que estavam no cio, prontas para inseminação. Às vezes eu
acho que ela ainda está por aí.
– Credo, Mariana!
Manuela volta vestida para a festa, mais agasalhada, botas
de salto, jeans justinho, casaco de couro com franjas e chapéu de cowboy sobre
os cabelos soltos.
– Fiu, fiu! – faz Juvenal. – Churrasquinho? Uma cafta bem passada para Manuela uma
brochete bem mal passada para Mariana!
– Acho que, agora, quero aquele quentão – diz Manuela –, estava
gelando naquele vestido, a emoção foi tanta que nem percebi.
– Rapazes! Cuidado com o quentão! – bronqueia Mariana. – Quero
só ver quem vai tratar do gado amanhã! Seu
Juliano, eu estou de olho no senhor,
hein!
Espalharam a fogueira no chão do terreiro, os fervorosos
passam caminhando descalços por cima das brasas.
As meninas sentam perto da varanda, ficam ali comendo
churrasquinho, tomando quentão, picante, quentinho, debaixo daquele céu
estrelado.
Em algum lugar do passado
– Meus parabéns, minha filha, a festa deste ano foi ótima,
todos elogiaram.
– Bom, todos ajudaram, sua namorada não quis vir?
– Bom, eu, quer dizer, ela...
– Estou brincando seu bobo, não querem misturar as coisas. Muito
moderno, muito bem, senhor Juvêncio,
quem diria!
– Para, você é uma gozadora!
– Eu?!
– É. Também tenho outra coisa para te falar, ontem na festa,
o presidente da câmara me disse que vão fazer uma homenagem para sua mãe.
– A troco?
– O de sempre, ele é o próximo candidato a prefeito, estas
coisas. Querem fazer um vídeo destes que fazem a gente chorar, coisas da política.
– Já sei, precisam de umas fotos, alguma história, coisas
assim.
– Exato, você sabe onde anda aquela caixa de fotos?
– No escritório.
– Você poderia ver isto? Não tive como escapar.
– Claro.
Fazia um tempão que Mariana não olhava aquelas fotos, as
mais antigas estavam amarelando, precisava escanear aquilo tudo.
Sua mãe parecia estas europeias que aparecem em filmes na África,
muito alta, magra, sempre fazendo alguma coisa e triste, sempre triste.
Ao lado do marido no casamento, na viajem de navio, com
Mariana ainda pequena, assoprando velinhas, nada, nenhuma como um sorriso para
ela saber como era.
O pai sempre falava da mulher com admiração, respeito. Falava
da falta que ela fazia, mas nunca tinha uma história divertida, uma situação
constrangedora, engraçada que tivessem passado juntos, nada, parecia mais um
filme do tempo da guerra.
Será que ela amava Juvêncio? Meu pai é tão charmoso! Será
que ela me amava? Por que aquela cara triste? Vinha de uma família rica, era
inteligente, educada, bem casada.
Tem uma foto sua, recém-nascida, o seu pai de bigode, olha
para a câmera todo orgulhoso mostrando a nenê. Sua mãe do outro lado, o cabelo
quase ruivo, ondulado, preso atrás, roupas claras, parecidas com as do marido,
calça de linho e uma camisa. Parece tão distante, seu olhar perdido no
horizonte amarelo daquela foto antiga.
As pessoas tristes ficam doentes – pensa Mariana, sozinha –,
por isto câncer não tem explicação.
Déjà Vu
Mariana está se vestindo para jantar com o pai e o noivo na
fazenda. Relembra da noite, no dia seguinte à chegada de Manuela.
Uma briga terrível, ela morta de ciúme dos dois, fez uma
cena e tanto, estragou o jantar à toa. Logo na manhã seguinte, o castigo; o
acidente do Juliano no curral, ela morta de culpa.
Meu Deus! – pensa Mariana. Espero que hoje seja diferente,
nem quero me lembrar daqueles tempos. E agora, quem diria? Justamente Manuela e
eu, melhores amigas. Como este mundo dá voltas.
Olha-se no espelho, como podem ser tão diferentes? Mariana
é mais alta que Manuela, mais esguia. Não que sobre algo no corpo da amiga,
não!
Experimenta o presente que Regine lhe trouxe de Paris, uma
calça e jaqueta de couro, uma blusa fininha, decotada, azul escuro, cor de
papel de algodão.
A calça justa ressalta sua bunda empinadinha, a blusa
mostra o suficiente dos seus peitos durinhos, seus ombros largos sustentam a
jaqueta.
Vira de costas, acabou de cortar os cabelos, são fortes e escuros.
Curtinhos, eles deixam ver sua nuca muito branca.
Acho que com um pouco de perfume, passaria por uma francesa
– imagina Mariana –, vou levar para Piracicaba, um dia visto para Regine ver
como ficou. Por aqui, nem pensar.
Tira a roupa,
devolve na caixa, veste um moletom e vai jantar.
Pia sempre caprichava um pouco mais quando o filho sentava-se
com os patrões, estava frio, fez suan.
Arroz cozido no refogado escuro de alhos, cebolas e vértebras de porco, com
suas carninhas saborosas e gordinhas. Salsinha e cebolinha verde. Prato
predileto de Juvêncio.
– Mais um pouquinho, gato?
– Obrigado, meu amor, já comi um pedação, está ótimo.
– Pai?
– Oh, céus! Preciso emagrecer – reclama Juvêncio –, mas vá
lá! Um pedacinho pequeno no lugar do doce. Este prato me lembra Goiás, está na
hora de irmos para lá, a Fazenda Felicidade anda meio abandonada.
– Falei hoje com o Rubão, Seu Juvêncio – adianta-se Juliano
–, a fazenda ainda tem bastante facho,
mas o pasto está bem seco, mandei ele
começar com o sal proteinado.
– Ótimo, mesmo assim, vocês sabem, o olho do dono... Goiás
não é mais o mesmo, nossos vizinhos estão disparando na nossa frente.
– Ótimo, assim compram os touros aqui da Liberdade – comenta
Mariana. – Quando faremos nosso leilão? Será em São Miguel ou em Crixás?
– Estou pensando em fazer em Nova Pitanga mesmo, que tal?
– Acha, pai?! Aquela corrutela?
– Está crescendo – comenta Juliano. – O recinto de lá está
até bem arrumadinho.
– Então, vamos estudar? – propõe o pai. – Acho que daria
mais personalidade. É pertinho da fazenda, fazemos um churrasco, o pessoal vai
gostar.
– Ok, mas os senhores
não se esqueçam de que tenho curso de FIV em Piracicaba, não contem muito
comigo.
– Puxa, minha filha, nem acredito que este ano já teremos
reprodução in vitro aqui na
Liberdade, será o máximo!
– Eu vou, Seu Juvêncio – propõe Juliano –, vou de
camionete, tem umas coisas daqui para levar.
– Muito bem, todo mundo se divertindo e eu aqui cuidando da
Liberdade – Juvêncio, brincando de vítima.
Felicidade
– Vou direto, Seu Juvêncio.
– Não faça isso, Juliano, pare em Goiás Velho, estará de
noite quando você chegar lá, mesmo que não esteja com sono, fica perigoso. Aproveita,
come um Empadão Goiano, no dia seguinte acorda cedinho, na hora do almoço ce tá
lá.
E assim foi. Juliano comeu o empadão e foi dar uma volta
pelo centro histórico de Goiás Velho. Da praça foi para o rio, até a casa de
Cora Coralina. Desde garoto, faziam aquela viagem, Juvêncio era fã da poetisa,
sempre parava ali em frente.
O pai de Juliano era Mineiro, do Prata, chegou ainda moço para trabalhar na Liberdade; depois,
foi com Juvêncio abrir a fazenda de Goiás. Naquele tempo, aquilo era um mato
que dava medo, não valia muito, recebeu como incentivo uma pequena porcentagem
da terra, que agora era de Juliano e de Maria Pia.
Juliano nasceu em Nova Gênova, mas era só quando
atravessava o Rio Grande que se sentia em casa, gostava daquilo. O horizonte
ficava mais aberto, tinha menos gente, mais gado, mais rios, mais mato, tudo
que ele gostava.
Não que lhe faltasse algo em São Paulo, estava muito bem,
mas era diferente. Lá, tinha sempre que caprichar para estar à altura da noiva,
do padrinho, era só o Juliano do Juvêncio, aqui ele era só Juliano, sócio da
Felicidade.
Respirou fundo, dama da noite! O centrinho antigo,
Patrimônio da Humanidade, já estava enfeitado para festa de Santa Bárbara, todo
iluminado.
Agora era só chegar, dos quase mil quilômetros, faltavam
pouco menos de duzentos, rios, lagoas, pássaros, estava perto da ilha do
Bananal. Finalmente Pitanga, o fim do asfalto a última vila antes da fazenda,
parou para bastecer, saber das novidades.
– Bom dia, Juliano, tudo bem? O Rubão acabou de sair daqui
com o óleo; disse mesmo que você viria, para eu fechar a conta. Incluo esta?
– Claro. Tem uma caixa aí na caçamba para você, a Pia que
mandou, não sei o que é.
– Obrigado, vou jogar uma água na camionete, posso colar um
adesivo da festa?
– Festa?!
– Olha aí! Terceira Festa das Nações de Nova Pitanga, você
nunca participou? Coisa do padre, lá pros
meninos da escola profissional, tipo uma quermesse, tem diversas barracas, cada
uma vende comida de um país diferente. Começa quinta-feira, venha prestigiar, a
nossa é a da Bahia.
– Desde quando Bahia é país?
– Diz que tá valendo! Renê, minha mulher é baiana, você
sabe. Tá lá com um saco de feijão de molho, vai ter acarajé, você vai gostar.
Acarajé! Quem diria? Juliano faz o cheque e segue para a
fazenda.
A Felicidade é muito diferente da Liberdade, é muito maior
e bem mais simples. A sede, uma casa avarandada, poucas divisões, no lugar do
forro, uma tela, telhas de barro.
Dividindo a sala da cozinha, uma prateleira com copos,
canecas, pratos, tudo de alumínio, tudo brilhante, refletindo no chão de
vermelhão encerado, o orgulho de Rosa, mulher do Rubão, mais atrás a casa do
administrador, igualzinha só que menor.
Rosa arrumou o quarto grande para Juliano, as fronhas e os
lençóis de algodão branco ainda têm o cheiro do sol. A mesa está posta para o
seu almoço, ali ele é o rei.
Tem muita coisa para fazer, a lida ali é muito mais simples,
o gado come o capim nos pastos, um coxo de sal. Água, eles bebem nos rios e nas
lagoas.
Agora, na seca não nasce bezerro, é só desatolar uma vaca –
elas gostam de comer um brotinho verde na beirinha do açude –, arrumar uma
cerca, curar uma bicheira, mas tudo é grande, o gado é muito. Além do Rubão, só
tem mais um e a mão amiga dos vizinhos. Na hora de vacinar o rebanho, eles
trocam dias de serviço. É assim, para dar conta de tudo, nesse mundão de Deus.
Juliano mergulha de cabeça no trabalho, na sexta-feira as
coisas começam a clarear, ele resolve dar uma olhada na festa.
Pitanga é muito diferente de Goiás Velho, aqui tudo é novo,
a cidade só tem vinte anos de emancipação. Avenidas largas, nos canteiros,
árvores pequenas; da floresta mesmo, não sobrou nenhuma.
As lâmpadas nas barracas parecem mais fortes na noite
escura.
Os gaúchos ficaram com a italiana, polenta e frango frito;
os japoneses estão na moda e peixe é que não falta por aqui.
O espanhol da veterinária improvisou um tacho, destes
enormes, de torrar farinha para fazer uma imensa paella caipira, açafrão da terra, porco, frango, peixe, tem de tudo.
Finalmente na barraca da Bahia, o acarajé.
– Quer um?
– Claro! Tudo bem, Dona Renê?
– Quente ou muito quente?
– Cuidado que eu conheço a sua pimenta – brinca Juliano. – Quanto é?
– Nada não! A Felicidade é nossa patrocinadora, a Pia todo
ano me manda o camarão seco.
– A caixa! Obrigado, então, isto está uma delícia.
O marido da Renê puxa Juliano pelo braço, ele o segue
comendo o acarajé, com lágrimas nos olhos.
– Renê não mostra, mas este ano está uma arara – diz o
marido. – Sabe como é mulher. Acostumada a ser a rainha da festa, sempre teve
fila para o acarajé. Este ano tem gente nova, temos um novo médico, a filha dele
veio passar as férias aqui, montou uma barraca com o pessoal do posto de saúde,
a francesa! Pode? Ensinou a garotada a fazer crepes, tipo uma panqueca. Tá um sucesso! Vem cá ver.
– Humm! – responde Juliano, de boca cheia.
Piracicaba
– Professor! Esta seria a causa da alta taxa de mortalidade
entre os bezerros de FIV? – pergunta Mariana do meio do anfiteatro.
– Atenção pessoal, a pergunta é boa. Acho que a Mariana
quer saber se estamos mimando demais óvulos e espermatozoides no laboratório, contrariando
a seleção natural. A natureza volta para buscar o par que não teria vingado. É
isto Mariana?
– Bem perto!
– Pode ser! Voltaremos neste assunto quando detalharmos os
protocolos, na aula de amanhã. Boa tarde, turma, e obrigado por hoje.
Mariana dirige sua camionete pelas ruas do campus. Está frio,
na luz do final da tarde, os prédios antigos e as velhas árvores passam
refletidos de cabeça para baixo no vidro, como num filme de época.
Sai do campus e mistura-se com a multidão de carros que
riscam a avenida com suas luzes brancas e vermelhas.
Vai ser bom chegar ao apartamento de Regine, tia Regine.
Era assim que costumava chamar a melhor amiga de sua mãe, está hospedada com
ela.
– Minha querrida,
que carrinha! Foi difícil?
– Muito.
Regine enlaça Mariana pela cintura e a leva para a sala do
luxuoso apartamento.
– Você está é precisando de uma bebida, uísque com gelo?
– Vou experimentar como você gosta, com um pouquinho de
água.
Regine traz uma bandeja e coloca sobre a mesa de centro, as
duas sentam-se no tapete, já era quase um ritual de final de tarde. Regine
serve-se de um pouco de gin e água, Mariana faz o mesmo, só que prefere uísque.
– Tim tim, Regine!
– Tim tim! Os brasileiros têm mania de colocar gelo em
tudo, não dá para sentir o gosto da bebida – comenta Regine.
Mariana gosta cada vez mais destes dias com a amiga que
herdou da mãe.
O pai de Regine veio da França para lecionar na ESALQ,
casou-se com a filha de um fazendeiro, nasceu Regine que, por sua vez, casou-se
com outro francês e voilá.
Agora, todos se foram. Regine ainda tem os filhos, mas
estão cada vez mais distantes, cuidando de suas próprias vidas. Também ficou contente
com Mariana por perto.
– Como você está
parecida com sua mãe, lembro-me dela com sua idade. Não, deixa-me ver melhor,
você também tem muito do seu pai.
– O bom humor, as pessoas falam; o gênio não, este dizem
que era o da mamãe.
– Não fale assim, sua mãe era divertida. Comigo ou entre as
amigas ela sempre tinha algo surpreendente para dizer, divertido. Ela lia
muito, suas ideias eram modernas, um sacrilégio aqui para a aristocracia rural
e machista onde vivíamos.
– Sério mesmo? – surpreende-se Mariana.
– Ela gostava de fumar, sabia disso? Não? Era moda; todas nós
fumávamos escondidas, ela soltava fumaça pelo nariz.
Mariana dá um gole, respira fundo, está atordoada com a
imagem, completamente nova para ela, nunca poderia ter imaginado, escuta Regine
ao longe, que continua:
– Aqueles eram anos muito interessantes, estávamos muito excitadas
com Jung, sua mãe queria estudar medicina, ser psiquiatra, mas como poderia? Acabamos
estudando Economia Doméstica aqui na ESALQ. Ela, na marra; eu, preguiçosa!
– Estou pasma, Jung! Tem mesmo uns livros lá em casa, não
imaginava de onde teriam vindo. Coitada! Acabou casada com um fazendeiro.
– Bom, ela não teve muita escolha. A fazenda seria dela de
qualquer forma, seu destino, e o seu pai... Era bonitão.
Mariana cora. Regine continua.
– Agora chega de histórias, vá se arrumar que vou levá-la
para jantar.
– Não dou conta, estou cansada, please!
– Tome uma chuveirada que você se anima, estamos na
trigésima Festa das Nações, sou uma das fundadoras da Barraca Francesa; não
preciso mais trabalhar, mas tenho que prestigiar. Este ano quero matar todos de
inveja com esta misterriosa mulher ao
meu lado!
– Quem, eu?
– Bom, você agora é uma mulher, uma linda mulher, tudo bem,
precisa de uns retoques aqui e ali – brinca Regine.
O Crepe
– Oi, Rachel! O Juliano quer um crepe doce!
– Quero?
Juliano não é de comer muito, tinha acabado de comer o
acarajé, ele é assim, come uma coisa e pronto, coisa de gente magra.
Ainda confuso, ele olhou para Rachel, a dona da barraca
francesa. Ela usava uma malha de gola alta e escura.
– Claro! Quero, sim, obrigado.
Ela puxou as mangas, que cobriam suas mãos, para os
cotovelos. Ela empurrou os cabelos castanhos e compridos para trás dos ombros, com
as costas das mãos. Colocou uma frigideira sobre o fogo, uma conchada da massa;
quando começou a firmar, soltou as beiradas com uma espátula e virou o crepe no
ar, açúcar e conhaque. A chama subiu até o teto, assustou Juliano, ela sorriu,
tinha feito de propósito. Dobrou o crepe no meio e no meio de novo, colocou no
prato de louça branca; um colega colocou uma bola de sorvete de creme, a outra
colega, uma colherada de calda de banana quente. Ela entregou a Juliano com um
sorriso, abaixou os braços e as mangas da malha voltaram a cobrir suas mãos,
estava frio.
– Quanto é que...
– Acho que eu vou querer trocar este crepe por um acarajé.
Rê, você assume aqui? E Rachel vai para a barraca baiana com os rapazes.
– Rachel, este é Juliano. Juliano, Rachel.
– Muito prazer – responde sem graça Juliano, equilibrando o
prato e os talheres, enquanto aperta a mão delicada de Rachel com sua mão
quente e grossa.
Rachel pede um acarajé com bastante pimenta.
– Dona Renê! Que só se fala neste acarajé, todo mundo é
doido por ele, não via a hora de vir experimentar, está mesmo uma delícia – e
assim Rachel conquista a baiana, que se esquece da ciumeira e se derrete toda.
Saem procurando um lugar para sentar e comer.
– Uma delícia este crepe – comenta Juliano –, onde você
aprendeu a cozinhar tão bem?
– Obrigada, também não é assim – responde Rachel –, na
minha cidade tinha uma feira como esta, eu aprendi.
– Puxa! Que cidade?
– Uberaba.
– Nossa, meu pai também era mineiro.
– Era?
– Era, quer dizer, sempre foi, já morreu, coitado.
– Desculpe...
– Imagina, faz um tempão...
Boeuf Bourguignon
Piracicaba tem uma usina de açúcar, construída nos padrões
ingleses do começo do século passado, tijolinhos e metal, restaurada e adaptada
para grandes reuniões.
Na Festa das Nações, tradicional evento para caridade, cada
país ocupa uma das construções do parque.
A Barraca Francesa é montada no bangalô do administrador,
uma casa belíssima, que todo ano é transformada em brasserie.
No inverno, das corredeiras do Rio Piracicaba vem uma bruma,
espalha-se entre as árvores do jardim, dá mais dramaticidade à chegada das duas
mulheres.
Mariana finalmente
vestiu seu presente e Regine, brincando de boneca, complementou com uma longa
echarpe de lã enrolada no pescoço e na cabeça, emoldurando seu rosto. Sua pele
branca, seus traços bem feitos, seus olhos grandes estão ainda mais bonitos com
o retoque prometido pela tia.
Regine tem traços fortes, mesmo no inverno, a pele sempre
bronzeada, cabelos longos e brancos presos num rabo de cavalo generoso. Tira
teatralmente seu casaco, depois a echarpe de Mariana.
– Ulálá! Ma chérie, vous
êtes superbe!! Quem é esta moça linda que vem com você? – pergunta o chefe
da barraca, beijando Regine.
– Você me mima demais, Roberto! Minha sobrinha, Mariana.
– Encantado senhorita, uma beleza à altura de Regine! Sejam
bem vindas. Salão, terraço?
A entrada de Regine continua um acontecimento. Da cozinha,
das mesas, todos têm um elogio para ela, que retribui coquete.
– Ah! O trabalho comunitário... nada nos dá tanto em troca.
Venha, minha querida, que tal aquela mesa no terraço?
O ar frio da noite, os aquecedores, as milhares de pequenas
lâmpadas dão atmosfera ao local.
Mariana está fascinada. Como isto é longe do seu cotidiano,
dos jantares na sede da Liberdade com o pai e o noivo.
– Madame Regine, o cardápio para hoje.
– Pare com isto, Reinaldo! Esta é minha sobrinha Mariana.
Reinaldo é um colega e nosso agente de seguros, nas horas vagas! O que vamos
comer, Reinaldo?
– Os escargots
estão maravilhosos, de um criador loca,l e as carnes vermelhas também, Red
Angus.
Os olhos de Mariana brilharam, ela gosta de uma boa carne.
– Escargots para
nós duas – pede Regine, rindo para Mariana. – Confie em mim, minha querida você
vai gostar! Eu vou comer o Boeuf
Bourguignon, e você, Mariana?
– Faux Filet.
– Rosé, à point, bien
cuit? Mademoiselle!
– Rouge!
– Ulala! Esta é
minha garota, muito bem. Uma garrafa do seu melhor cabernet. Obrigada, Reinaldo – arremata Regine.
– Um amuse bouche!
As meninas experimentam a minúscula torrada, coberta com
uma nuvem de queijo de cabra fresco.
Tomam um gole do vinho, rubro e vibrante, servido em taças
enormes, de cristal finíssimo.
– Regine! Estou perplexa! Nunca imaginei que seria
transportada para este mundo maravilhoso. A última vez que comi algo de bom foi
quando me serviram um entrecôte
decente em Nova Genôva e olhe que desconfio que era da minha vaca, a Maninha.
– Já sei, a que morreu – responde Regine, que já conhecia a
história. – Você não esquece esta vaca. Mon
Dieu!
– Bom, a vida no campo é muito simples, a gente se afeiçoa,
às vezes… também foi um dia diferente...
Chegam os escargots.
Reinaldo os serve, arrumados numa peça própria de louça branca, aquecida e com
um lugarzinho para cada concha, tudo sobre um sousplat de prata.
Mariana sente o cheiro da manteiga torradinha e da salsa,
sua boca fica cheia d’água, está com fome.
Regine segura a primeira concha com a pinça e habilmente
retira o molusco, coloca sobre uma pequena fatia de baguette e come com gosto.
Mariana segue os passos da anfitriã. Que surpresa. O
gostinho de madeira, a aveludada acidez da manteiga, a suavidade da salsinha, o
gosto do pão, bem cozido e da casca grossa.
Limpa os lábios com o guardanapo branco e toma um gole do
vinho. Que combinação!
– Regine! Que delícia!
– Sabia que você ia gostar, Reinaldo tinha razão, estão
ótimos. Também, gratinado com manteiga e salsinha, acho que eu poderia comer
qualquer coisa!
– Este vinho está maravilhoso, já tinha tomado uísque, acho
que estou um pouco...
– Aproveite, minha querida! Uma vez, eu e sua mãe tomamos
um porre de vinho na faculdade.
– Minha mãe de porre?
– Resolvemos que largaríamos tudo e partiríamos por este
mundo.
Não posso crer, e então?
– Então... que o ano acabou, nos formamos, sua mãe foi para
a Liberdade. Meu pai morreu pouco depois. Eu e minha mãe sofremos muito, tornamo-nos
muito próximas de Renan, assistente do meu pai, muito parecidos, acabei me
casando com ele.
– Sei...
– Um pouco antes, sua mãe me escreveu, cobrando nosso trato.
Não consegui responder. Depois disso, só me lembro dela sempre muito séria,
muito tristonha, acho que só você a deixava mais contente.
As duas estão muito emocionadas, Reinaldo se aproxima serve
mais vinho.
– Minha filha – continua Regine –, busque seus sonhos. Não
faça tudo que esperam de você, ninguém sabe ao certo, às vezes nem é o certo!
Chegam os pratos.
Obras de arte. Elas comem, elogiam, a conversa fica mais
animada.
Mariana conta da sua
vida, do curso, das fazendas, do casamento, de Manuela, a nova professora, que
ficaram amigas, dá voltas, tudo meio confuso.
Lá pela sobremesa, um delicioso Baba au Rhum, Regine diz, um pouco aflita:
– Minha filha, você tem tantos planos. Eu diria que, na
verdade, demasiados; você está perdida, não está?
– Não, imagina, sei o que quero, não sei?
– Difícil dizer, isto não existe uma resposta pronta.
Quando você estiver preparada, você saberá, eu espero!
Mariana olha Regine sem entender, normalmente ela é pão pão, queijo queijo.
– Você me parece cansada, este curso deve estar te matando,
acaba sexta, não é mesmo? Tire uns dias para você, que tal um belo hotel? Campos
do Jordão, tanta gente bonita nesta época, vale a pena aproveitar, vou lhe dar
de presente.
– Juliano está em Goiás, invernou por lá, nem sei quando
volta.
– E sua amiga Manuela? Ela não está de férias?
– É, podia ser.
Pitanga
Juliano voltou à festa no sábado, experimentou um crepe
salgado, mas Rachel não estava lá. Foi à missa no domingo, deu uma volta na
praça.
Na segunda, voltou ao trabalho.
– Rubão, vou pra vila, você precisa de alguma coisa?
– Nada, você já pagou o posto de gasolina. Tem uma notinha
na veterinária, outra na oficina.
– Tudo bem, deixa comigo, vou procurar o pessoal do leilão,
ver no que dá, Seu Juvêncio tem umas ideias...
– Ah! Lembrei. Desta vez, também tem uma continha no mercadinho,
peguei uns mantimentos para o pessoal que veio ajudar na vacina.
– Tá bom.
Juliano pagou as contas e foi falar com o dono do leilão. O
homem ficou encantado com a ideia. Na hora propôs melhorar o recinto,
adiantaria seus planos para a reforma dos banheiros. Mostrou sua mala direta,
parcerias com outros leilões, leiloeiros disponíveis e finalmente um álbum com as
melhores e mais belas pisteiras da
região.
Juliano saiu de lá meio tonto, já estava na estrada para a
fazenda.
– Puts! Esqueci o mercadinho.
Voltou. Demorou um pouco para acharem a conta, ele estava
distraído, pensando no relatório que faria para Juvêncio.
– Boa tarde, Juliano. Você também na lida doméstica?
– Uhm! Ah! Oi, Rachel. Tudo bem? – tira o boné e deixa os
óculos escuros, que estavam em cima da pala, caírem no chão. – Desculpe, não. Tô pagando as contas da fazenda, já
estava indo pra lá, voltei... E você?
Rachel mostra as sacolas que ela segura com as mãos
escondidas na manga do moletom.
– Brincando de casinha, meu pai alugou uma chácara, estou
tentando dar um jeito.
A caixa acha a conta, Juliano paga e saem juntos, ele vai
para a camionete e percebe que ela está a pé.
– Quer uma carona?
– Imagina, não quero atrapalhar, você deve estar cheio de
coisas para fazer.
– Na verdade... até já acabei.
– Então tá, te faço um café.
Campos
– Deve haver algum engano, por favor, verifique a reserva,
o nome é Mariana.
– Um apartamento duplo, com cama de casal, pois não?
– Não! Duplo, com duas camas de solteiro.
– Me perdoe, não
sei o que aconteceu, vamos resolver isto, o hotel está lotado, final de semana
de férias, talvez mais tarde tenhamos alguma desistência...
– Escuta! Faz quinze dias que estou num curso difícil, tive
aulas o dia todo, minha amiga chegou de uma viajem cansativa, queremos um
apartamento agora!
– Eu enten...
– Deixa, Má – contemporiza Manuela –, pega este mesmo, a
gente se ajeita, quem sabe depois, com calma, ele troca pra gente, não é, moço?
– Certamente, senhorita Manuela. Vou fazer melhor. Vou
hospedá-las numa suíte de luxo! Vocês ficarão nela sem nenhum adicional, pelo
inconveniente!
Mariana bufa e aceita o conselho da amiga, pegam a chave e
seguem o carregador pelos corredores do enorme hotel.
A suíte é linda, decorada em tons de bege, puro mármore
italiano e o mais impressionante, uma enorme banheira de hidromassagem.
Marina tem uma garrafa de uísque e uma de Drambuie na mala, queria fazer uma
surpresa para Manuela, lembrar aquele dia em que fugiram do baile para a
Liberdade.
Prepara um uísque com um pouco d’água, como aprendeu com Regine,
e outro com Drambuie e gelo para
Manuela, sentam na varanda, tomam suas bebidas, o sol se põe.
Tudo parece melhor!
O jantar é servido no salão principal, enorme, as meninas
estão muito arrumadas, muito comportadas, um pouco bêbedas. Mariana, ainda entusiasmada
pelo jantar com Regine, pede uma garrafa de cabernet.
Desafortunadamente, a noite não é das melhores, o ambiente
é um pouco soturno para duas jovens sozinhas, todos olham, comentam.
As duas decidem voltar para o apartamento, tomar mais uma
bebida na varanda.
O ar fresco da noite, o jardim iluminado, a amiga saudosa
que veio vê-la, nada disso conseguia melhorar o ânimo de Mariana, estava mesmo
angustiada.
– Para com isso, lindinha – Manuela tenta animar Mariana. –
Deus ainda te castiga, você é linda, fazendeira, seu pai e seu noivo te
veneram!
– Para! Eu não quero ser venerada. Você sabe muito bem como
é. Meu pai não sabe direito o que fazer comigo, então só me cobra, cobra! Juliano
é cria dele, faz igualzinho. Tô cheia.
Eu quero um noivo de verdade. Quero que me amem, que me desejem. Sei lá, me
cheirem, me mordam, me batam, sou gente.
– Ah! É? Deixa comigo que vou lhe dar uns tabefes e é pra já!
Manuela segura Mariana pelos braços e cheira o cangote da
amiga, faz um bocão de vampiro, ameaçando morder seu pescoço. Mariana sente um
arrepio com aquela proximidade e tenta afastar a amiga.
– Para! Você é uma palhaça, não leva nada a sério!
– Boba, só quero te distrair, quer mais um gole?
– Quero, obrigada. Sabe? Conversei muito com Regine, amiga
da minha mãe. Me contou que ela era
alegre, cheia de ideias.
– Então, que nem
você, uai!
– Não quero terminar como minha mãe – Mariana está mesmo
perturbada com a ideia, sua testa está suada.
– Calma, calma, não vai acontecer nada de ruim com você, eu
prometo – Manuela passa o braço sobre o ombro da amiga, enxuga a testa de
Mariana com a mão espalmada.
– Já te contei, eu passei um tempão vendo as fotos dela, não
tem nenhuma sorrindo, nenhuma, Manuela! Cabe na sua cabeça? Comigo no colo, ela
me olha com carinho, triste, como se soubesse que não ia me ajudar, com pena de
mim, pode? Morrer de câncer é morrer de tristeza, eu não quero isso para mim.
– Não gosto quando você fica assim. Vai ver sua mãe não
gostava do sorriso dela, não sorria nas fotos, tá cheio de gente assim!
– Não dá mesmo pra conversar
com você, vou dormir que eu ganho mais.
– Pronto, pronto, já parei. Você nem está mais triste; tá brava, daqui a pouco estará sorrindo.
Vem cá, me dá um abraço. Você sabe,
eu entendo sua dor, nem posso pensar em perder minha mãe, ainda mais
pequenininha como você, Deus do céu, não.
Mariana, meio sem jeito, aceita o abraço da amiga, não é
muito boa em retribuir carinho, não teve com quem aprender, aos poucos passa
seus braços por Manuela e a abraça também.
– Atchin! É o perfume do seu cabelo, Manuela, desculpe, eu
tenho alergia, você sabe.
Finalmente as duas riem, Mariana não consegue ficar brava
por muito tempo perto da Manuela.
– Seu problema, Má, é que você é muito arredia, arisca! A
gente não pode nem chegar perto de você.
– O pessoal do curso me zoava
mesmo, diziam que parecia que eu tinha sido criada solta na braquiária! – conta Mariana.
– Tá vendo, na escola a gente comenta entre as professoras.
Tem criança que vamos abraçar, ela leva um susto, não está acostumada, coitada.
Isto fica pro resto da vida – diz
Manuela.
– Ê! Para! Também não sou bicho do mato!
– Filha única, sem a mãe, sozinha. Pensa! Lá em casa, com mais
uma irmã, dois irmãos e uma tia. Era muito diferente.
– Posso imaginar.
– Estávamos agarrados o tempo todo.
– Se matando?!
– Sim, na maior parte do tempo brigando, tudo bem, não
importa. Bastava uma noite de trovoada e acordávamos todos na cama dos meus
pais. Só tinha um banheiro na casa, acabava todo mundo junto.
– Acho que você tem razão, só eu e meu pai, naquele
casarão...
– Quando o recepcionista falou em uma cama de casal, pra mim
não faz a menor diferença. E eu nem sabia que era tão grande!
Conversam madrugada adentro até dormirem.
Paraíso
– Olha ali, tá vendo a placa? Chácara Paraíso, é ali que eu
moro – mostra Rachel.
O lugar já teve dias melhores. Uma entrada justo no caminho
para a Felicidade, Juliano já tinha visto, não reparou. Um corredor comprido
ladeado por eucaliptos, lá na frente uma clareira com um bangalô, um varandão
com uma cozinha aberta e uma piscina vazia e cheia de folhas.
– Desculpe, ainda está meio bagunçado, estava pior quando
eu cheguei, meu pai é meio sistemático, tem um casal que vem uma vez por
semana, assim, vai tempo.
– Imagina, sei como é. Lá na felicidade temos um monte de
gente... Estou em cima faz uma semana, mesmo assim, dá medo!
– Senta aqui na mesa da varanda, o que você gosta de comer?
Pão de queijo?
– Adivinhou! Nossa minha mãe é especialista.
– Concorrência forte! Não sei se posso com isto. Dona Renê
andou me contando, disse que sua mãe é ótima cozinheira.
– Falou é? Bom, ela é boa mesmo, mas aí estamos falando de
fazer mesmo os pães de queijo. Nossa! Aquilo é uma loucura, ela me punha para
ralar o queijo, ia acender o forno, depois escaldava os polvilhos... sei lá, uma
dificuldade.
Rachel tinha ligado o forno elétrico, coloca tudo num
processador de alimentos e bate.
– Peraí, você vai
mesmo fazer os pães de queijo?
– Não como os da mamãe, mas espero que dê para comer – com
habilidade, Rachel faz as bolinhas e coloca a assadeira no forno. – E agora?
Café? Preto com um pouco de leite? Acertei?
– Não acredito que você está fazendo pão de queijo e café
com leite para mim. Olha, já está começando a cheirar.
Juliano era sensível para comer, acostumado todos os dias,
na mesma hora, a mesma comidinha da Maria Pia, sofria quando viajava. Aliás, já
não tinha dado muito certo no empadão goiano, depois o acarajé. Rosa, a mulher
do Rubão, como dizia Juvêncio, era melhor na limpeza que na cozinha. Contou tudo
para Rachel, que ria dele que se matava.
O papo descontraído, aquela caneca de café com leite
quentinho e o pão de queijo fizeram milagres pelos intestinos do cowboy.
– Ainda não acredito que você fez tudo isto, me salvou a
vida.
– Para! Bobo, come mais um, tó!
– Seu pai não vai ficar bravo? Nem me conhece, eu aqui
comendo o pão de queijo da filhinha dele.
Rachel cora um pouco e responde triste.
– Coitado do meu pai, tem mais com que se preocupar, sai de
manhã, volta de noite, quando não dorme no postinho.
– Como assim, pensei que médico levava uma vida de bacana,
quero dizer...
– Então, era assim mesmo, todos nós, até aquela vac... da
minha mãe aprontar.
Juliano para de comer.
– Nossa Senhora! O que foi?
– O de sempre, meu pai tinha uma clínica bem cotada,
trabalhava bastante, ganhava dinheiro, morávamos numa casa bonita, tava tudo certo, até que...
– Que?
– Bom, meu pai tinha um amigão, colega, começaram juntos,
subiram na vida. O sócio, meu pai fala que ele tem DDA, não aprende, coisa
deles. Não estava preparado para o sucesso, eu acho, fazia um monte de coisas
erradas. Meu pai odiava aquilo.
– Puxa!
– O “amigo” montou outra clínica, cada vez fazia mais
sacanagem, ganhava mais dinheiro, ria, zombava do meu pai, caçoava dele, até o
dia que, não contente, roubou-lhe a mulher! Quero dizer, minha mãe. Meu pai
encontrou os dois, ela de quatro, na cama deles e pior, descobriu que aquilo
vinha de anos e ele, claro, o último...
– Oh meu Deus! Isso não se faz – Juliano segura as mãos da
moça, que chora na sua frente.
– Meu Deus! Desculpe-me, mal conheço você... Estou aqui faz
um tempão, não posso me abrir com ninguém... Claro que a história chegou antes do
meu pai, mas também não preciso ficar repetindo. Por favor, agora vá, desculpe,
me descontrolei...
– Claro, claro, desculpe, já vou.
Juliano pega o boné e os óculos, entra na camionete, abre o
vidro. Rachel se aproxima e dá um beijo no seu rosto. A boca dela pega um
cantinho da dele. As lágrimas quentes de Rachel molham sua face, ela fala baixinho.
– Me perdoa. Você volta para me ver?
– Claro.
Ela se afasta, Juliano se vai, dirige alguns quilômetros
sem saber para onde ir, as emoções confusas, os pensamentos girando na sua
cabeça.
Bougainvíllea
Mariana, há dias fora de casa, acorda e não sabe bem onde
está. Faz um pouco de frio. Ah! Campo de Jordão. Ela reconhece a cama enorme,
os lençóis encorpados e a colcha de piquê, pesada. Aconchega-se para mais um
soninho e percebe que Manuela esta dormindo de conchinha com ela.
Acorda de repente, estática, assustada, sai devagarinho da
cama, Manuela balbucia qualquer coisa, abraça o travesseiro e volta a dormir.
No banheiro, olha-se no espelho, está corada. Põe pasta na
escova, começa a escovar os dentes e pensa – “Mariana do céu, o que está
acontecendo com você, minha filha?”.
– Ei, dorminhoca, acorda! Café da manhã!
– Para, Má! Ainda tô
com sono, a gente acabou de jantar... Só se come neste hotel?!
– É um templo de gastronomia, você queria o quê?!
– Vou virar uma elefanta assim!
– Vai nada, vamos tomar um café saudável, e vamos caminhar
que está um dia lindo.
– Quero mais é tomar sol, deitadona lá na piscina, será que
tá frio?
– O céu está azul anil, acho que ainda tem um ventinho, a
gente já vai de biquíni, quando voltarmos da caminhada, acho que vai estar
ótimo, te pago uma caipirinha!
– Me convenceu! Tô indo – vai dizendo Manuela, enquanto
levanta com o rosto todo amarrotado.
As tristezas e trevas da noite anterior ficaram mesmo para
trás. Os jardins do hotel são maravilhosos, o gramado perfeito, o bosque, as
trilhas e, finalmente, a piscina. Imensa, cristalina.
Tomaram sol. Manuela, com os mais mirabolantes cremes,
queria ficar bronzeada. Mariana, com protetor solar, odiava se queimar.
Conseguiu um lugar perfeito, ela na sombra da bougainvíllea, a amiga no sol e o
bar bem pertinho.
De volta à suíte.
– Nossa, vou me jogar nesta hidro enorme, não quero nem
morrer! – diz Manuela, enquanto abre os registros e tira o biquíni. – Uau!
Olha, fez até marca! Você vem?
– Será que dá tempo? Temos o almoço – considera Mariana.
– Não dou mais conta daqueles velhos – diz Manuela –, chega
ontem no jantar, ficavam olhando a gente. Li em algum lugar que podemos pedir
um lanche aqui na suíte, eu acho que prefiro. Andamos, tomamos sol, não saio
daqui por nada!
– Bom! Se é assim, vou abrir logo um prosseco, férias são férias.
– Oba!
Mariana, longe da desenvoltura da amiga, também tira seu
biquíni, pendura meticulosamente esticado no banheiro e vem para a hidro
enrolada numa toalha.
– Má, já que estamos aqui, só nós duas, vou falar uma
coisa, na boa, tá! Acho que entendi o que sua tia Regine quis dizer com uns
detalhes, foi isso que ela disse?!
– Bom, ela não é minha tia de verdade, mas o que é, afinal?
– pergunta sem graça Mariana.
– Bom, eu acho esta sua delicada linha sagittal um charme,
mas...
– Sagi, o que?
– Sagittal boba, também não sabia, vi no menu da minha
depiladora, essa fileirinha que vai da virilha até o umbigo.
Mariana instintivamente tapa com a mão, cora e olha para
ver se Manuela também tem uma.
– Eu tenho um pouco também, não é certinha assim como a
sua, tirei. Aliás, em você tudo é perfeitinho.
– Se eu já estava sem graça, agora é pra acabar.
Mariana responde, esvazia o copo de vinho de um gole, respira
fundo. Serve os dois copos de novo e pensa – também não é assim, sou maior,
pós-graduada em reprodução –, retoma o controle de si mesma e continua:
– Bom, agora que começou a falar, vai, dona Manuela, acaba logo comigo!
– Para! Você leva tudo muito a sério. Isto é só conversa de
garotas, quem faz sua depilação?
– Depilação?! Ora, moro lá naquele fim de mundo, estou
sempre correndo. Eu mesma dou uma aparadinha com a maquininha.
– Você é tão certinha, que até que não fica mal, mas enfim,
acho mesmo que você precisa de uns retoques!
– Tirar mais?! Deixar só um pouquinho...? – balbucia
Mariana.
– Eu já experimentei todos os modelitos, quer saber, cansei! Agora eu tiro tudo e pronto, pelo só
atrapalha!
– Eu não dou conta, deve doer demais, tô fora!
– É, dói mesmo, também não é pra ficar escrava disso, depois que eu me mudei lá pra Nova Gênova, também não tenho
ninguém pra me ajudar, minha irmã que
é boa nisto. Depilo só o que sobra do biquíni, raspo o resto e pronto, uma vez
por mês.
– Bom, acho que dava pra
suportar, não tem perigo de cortar...?
– Acha, boba! É só ter cuidado, vem cá.
– Oh, céus! – e Mariana esvazia o copo de novo.
Manuela tem um arsenal de beleza na mala, sentou a
envergonhadíssima Mariana na borda da banheira e começou.
Fez uma generosa espuma com o xampu e cuidadosamente foi
raspando todos os pelos de Mariana, que sentia as sensações mais confusas e
continuava bebendo vinho.
– Olha aí que beleza! Você tem uma xoxotinha linda!
Mariana já passou todos os seus limites, também olha,
talvez pela primeira vez, detalhadamente para si mesma, enquanto Manuela,
orgulhosa de sua obra, serve-se de mais vinho.
Não é que é bonitinha mesmo?! – pensa Mariana. Não é
grande, mesmo raspada, não é assim muito saliente, quase totalmente fechada. Entre
as bordas, de baixo em cima, um discreto rendado, estreitinho, misto de rosa e
roxo, quase escondido, seu corpo é branquinho, combina.
– Misto quente, Má?
– Claro.
Eucalipto
Juliano voltou à cidade, Juvêncio queria saber umas coisas
do leiloeiro.
Na volta para a fazenda, entrou na Paraíso, pra ver como Rachel estava. Foi entrando
pela alameda devagarinho. Ela viu a camionete, parou de replantar o manjericão
e veio andando em sua direção. Segurava um balde numa mão, uma pazinha de
jardinagem na outra, tentou limpar o suor da testa, acabou caindo terra no seus
olhos.
– Boa tarde! Diz alegremente Juliano.
– Boa tard... merda! Desculpe, caiu terra no meu olho – Rachel
deixa cair a pazinha e o balde, tenta limpar os olhos com as costas das mãos.
– Para, peraí,
vem lavar – Juliano abre um pouquinho a torneira e, com a mangueira, lava os
olhos de Rachel.
Ela põe o rosto para frente, fecha a boca num bico. Juliano
lava seus olhos com cuidado, depois as mãos, como de uma criança. Tem prática em
lidar com animais, não é a mesma coisa, mas enfim. Ela finalmente passa as mãos
no rosto, abre os olhos e olha para ele. Juliano repara que são quase cinza com
pintinhas escuras em toda a volta, é difícil saber a cor, combinam com sua pele
muito branca e seu cabelo castanho bem escuro. Ela está de camiseta, molhou um
pouco, ele vê o contorno dos seios por baixo do tecido, sua cintura é fina, ela
está com um short jeans curtinho, tem as pernas grossas. Além de tudo, o cheiro
dela é bom.
– Oi!
– Oi de novo, desculpa, só dou fora com você, entre, que
bom que você veio me ver, venha, vou fazer café, tem bolo de fubá. Você gosta? –
Rachel puxa Juliano pela mão.
– Adoro.
– Meu pai disse que está bom, mas ele não conta, tudo que
eu faço ele adora, coitado.
– Então você me contou aquela história, eu fiquei
passado...
– Coitado de você, mal chegou, me achou uma louca, despejei
tudo em cima de você.
– Agora que você começou... me conta tudo. O que afinal um
médico de sucesso veio fazer aqui em Pitanga do Goiás?
– Bom, ele ficou muito fragilizado com aquela história
toda, era uma tortura ver os dois alegres na casa que ele tinha construído. Trabalhar
naquela clínica sabendo que uma parte do dinheiro ainda era do ex-sócio e a
metade do que sobrava era para ela.
– Coitado.
– Em vez de melhorar, ele foi piorando, pirando. Um dia,
largou tudo e procurou um emprego; quanto mais longe e pior o salário, melhor.
Assim a parte dela seria menor, coisa de maluco, você sabe, enfim, cá estamos.
– Que loucura!
– No começo, eu também pensei assim, depois, vim para cá. Acho
que, sem querer, ele acabou acertando. Só teríamos duas escolhas; uma cidade
tão grande que nosso drama passasse despercebido ou um lugar com pessoas tão
próximas que pudessem nos ver como iguais. Pessoas que se enxergassem em nós,
que conseguissem nos entender, perdoar, tocar em frente.
– Puxa – suspira Juliano.
– Chega desta história. Quer mais bolo? Não mesmo? Então
vem ver meu jardim.
Rachel fez muitos progressos, Juliano entende daquilo, dá
conselhos, arruma, ajuda.
– Puxa! Você sabe tudo de plantas, obrigada pelas dicas,
quero só ver onde vou arrumar alguém que entenda de piscinas – diz Rachel
desanimada. – Já tiramos as folhas, mas ninguém sabe como isto funciona.
– Seus problemas acabaram! Adivinha quem cuidava da piscina
do Colégio Agrícola?
– Você!
– Exatamente, cadê a casa de máquinas, a bomba, quero
dizer.
– Acho que é aqui, olhe.
– Não parece tão mal, deve ter um poço, funciona?
– Funciona, foi a primeira coisa que meu pai mandou arrumar.
– A bomba do filtro está travada, me deixa pegar uma chave.
Juliano vai até a camionete e volta com uma respeitável
caixa de ferramentas, debruça-se sobre a bomba, usa um desengripante e começa a
tentar mover o eixo da bomba. O sol está quente, o tempo muito seco, está
difícil.
– Posso tirar a camisa?
– Claro.
Finalmente, a bomba cede, está solta, ele dá uma ligadinha,
ela vira, desliga imediatamente.
– Tá funcionando, mas não pode funcionar seca, acho que a
água vai sair meio suja no começo, posso ligar?
– Manda bala, depois eu limpo, não estou acreditando que
teremos uma piscina, meu pai vai ficar eufórico.
A água sai barrenta no começo, depois vai limpando, Juliano
coloca a bomba para funcionar, testa o filtro.
– Está tudo em ordem, eu vou abrir o ralo, quer limpar o
fundo pra depois deixar encher com água
limpa? – pergunta Juliano.
– Imagina, muito trabalho, você estava todo arrumado, ninguém
merece!
– Minha filha, se tem algo que não me assusta é trabalho –
Juliano senta na borda da piscina, tira as botas e enrola os jeans até o
joelho, entra na piscina. – Me dá uma vassoura.
– Peraí, vou
jogar água pra você – Rachel tira as
sandálias e entra na piscina com a mangueira.
Juliano começa a varrer o fundo da piscina; atrás dele, Rachel
vai jogando água com a mangueira, começam de um lado, vão até o outro.
– Está ficando ótimo, Juliano, você sabe mesmo o que faz! –
Rachel brinca e joga água nos pés de Juliano. – O que mais você sabe fazer?
Juliano também joga água em Rachel, com a vassoura, era
para ser no pé, espirra na camiseta dela, ela joga água nele com a mangueira.
Ele tenta segurar Rachel, escorrega, patina, ela tenta ajudar, cai por cima
dele.
Riem como crianças, Rachel dá um selinho em Juliano, ele
responde com um beijo apaixonado.
Daí para frente ninguém sabe dizer exatamente como
aconteceu.
Rachel abandonou-se àquele abraço apertado, sentia-se
segura, depois de tudo. Aquele homem forte, verdadeiro, engraçado, que gostava
da sua comida e sabia ajudar, era tudo o que ela queria.
Juliano já tinha ficado com outras mulheres, mas desta vez sentia
que estava fazendo tudo certo, que era admirado, acariciado com gosto. Queria
que aquilo durasse para sempre.
Ele beijou Rachel e a beijou de novo, beijou sua pele
branca, ela tirou a camiseta, ele beijou seus seios, lindos, grandes, brancos
de bicos escuros.
Depois, ele beijou aquele ventre macio até chegar naquela penugem
castanha. Sentiu o cheiro do sexo, da fêmea que tinha em seus braços. Beijou
mais, sentiu na boca o gosto da mulher, dela.
E abraçou Rachel tão forte, como se fosse para os dois
serem um só e então, finalmente eles eram um só. Mexiam-se vagarosamente, o
prazer daquele contato molhado, íntimo, eletrizante, espalhou-se pelos seus
corpos, o mundo parou.
– Quando começa a escurecer, estes eucaliptos têm cheiro de
massinha de modelar, reparou? – Pergunta Juliano.
– Meu Deus do Céu, meu pai vai chegar! Corre, corre, põe
sua roupa.
Juliano, ainda meio atordoado, começa a juntar suas coisas,
leva a caixa de ferramentas para a caminhonete.
– Assim? De repente?
– É, adoraria que você ficasse para conhecer o doutor, mas
nem ele é tão bobo assim, vai sacar na hora, vem jantar amanhã para ver como
ficou a piscina, oito horas, beijo. Tchau!
Romeu
As meninas estavam com fome. Manuela descobriu que, além do
jantar tradicional, aceitavam adesões para uma noite de fondue, no piano bar.
– Melhor do que aquela velharada. Não acha, Má?
– Claro!
Os hóspedes chegando, os garçons acendendo os fogareiros,
mais um e mais outro. O ar foi ficando irrespirável, algo errado com a exaustão.
Ninguém tomava uma providência, os hóspedes revoltaram-se, liderados por
Manuela e um outro, Romeu.
Finalmente, as janelas foram abertas, os ânimos se
acalmaram, Romeu sobrou sentado na mesa das duas.
– Na última vez que estivemos em Paris – começa Romeu –,
fomos convidados para um evento como este, garanto que estava bem melhor,
aquilo sim!
– Puxa, Paris?! – entusiasma-se Manuela.
– Fondue em Paris? – estranha Mariana.
Mariana se considera uma pessoa aberta, mas homem com as
unhas polidas, ela não suportava! Engenheiro? De esmalte?
Não era só isso, a mão dele era mole, branca, ela sentiu um
calafrio quando ele se apresentou. Cara de bolinha, uma barbinha raspada, pelos
só em volta da boca. Um topete estranho.
Manuela aparentemente não estava dando a mínima para estes
detalhes.
Mariana estava cansada demais para aquilo, também não
queria ser uma chata, afinal, ela convidara a amiga e até agora só tinha lhe
aporrinhado com suas angustias. Despediu-se e foi dormir.
O Doutor
Juliano deveria estar meio sem graça – jantar na casa do
médico, nem o conhecia –, mas não estava.
Juvêncio tinha lhe dado carta branca para cuidar da Felicidade.
Ele estava correspondendo, trabalhou duro, tomou as decisões certas, conseguiu
entusiasmar o pessoal, a fazenda estava nos trinques.
Pode ser que esta segurança recém-adquirida estivesse por
trás de seu “sucesso” com Rachel, ou vice-versa. Fato é que uma coisa puxou a
outra, Juliano sentia-se bem.
Oito e quinze em ponto – uma atrasadinha faz parte do
protocolo local –, estacionou a camionete na Paraíso.
Rachel e doutor Roberto estavam sentados na varanda, perto
da churrasqueira, levantaram-se para receber o moço. Os dois muito à vontade,
camiseta, bermuda e chinelos, fizeram festa para o convidado.
– Muito prazer Juliano, muito obrigado por ter arrumado
nossa piscina, já estava me preparando para comprar um filtro novo, ficou
ótima, veja, azulzinha.
– Imagina, doutor Roberto!
– Bob! Meus amigos me chamam de Bob.
– Foi só um pouquinho de WD, aquilo é mesmo uma coisa boa.
Olá, Rachel, tudo bem?
– Tudo, quer uma cerveja?
– Claro.
– Estamos fazendo churrasco – explica Bob –, Rachel fez uma
farofa que está uma delícia, não sei onde esta menina aprendeu a cozinhar, a
mãe dela, minha ex... Você já deve saber da história, claro! Mas, enfim, ela
não sabia fritar um ovo e minha filha, olha que maravilha.
– Receita da dona Renê, ela tá me ensinando, come uma linguicinha, Juliano – oferece Rachel.
– Hum! Com esta linguiça, vai bem é uma cachacinha – lembra
Bob –, ganhei uma garrafa de um paciente, é um espetáculo, vamos tomar uma,
Juliano?
– Para experimentar.
E o doutor contou da sua vida, de como chegou a Pitanga e
do bem que esta mudança lhe fez. Queria saber das criações das roças, coisas
que Juliano conhece bem e que teve gosto de explicar.
– Juliano, meu amigo! Atirei no que vi, acertei no que não
vi! Só queria fugir da minha história infeliz, encontrei um povo hospitaleiro. Entre
as pessoas do campo a camaradagem é diferente, agora então que minha filinha
está comigo, é mesmo o paraíso, pena que as férias estão acabando, ela vai...
– Vou ficar – diz Rachel.
– Como assim? Minha filha, sua mãe já disse que não deixa.
– Não deixava, vou fazer dezoito anos esqueceu?
– Dezoito? – engasga Juliano.
– É, dezoito! – enfatiza Rachel.
– Puxa! Parabéns, então.
– Minha filha! Seus estudos? Como vai ser?
– Minha transferência para Pitanga já está quase pronta,
acabo o colegial até o final do ano, depois vamos ver o que vai ser...
– Minha filha!
Volta às Aulas
– Manuela! Que bom ter você de volta – diz Mariana para
Manuela –, estava enlouquecendo, aqui sozinha.
– Exagerada!
– O pessoal daqui parece que tem medo de mim. A única
pessoa com quem converso de verdade é você. Também não adianta muito porque
você é uma palhaça, só me zoa mesmo!
– Palhaça! Eu?! Tá bom, também não brinco mais, pronto.
– Por favor, não faça isto, que bom que suas férias
acabaram e você voltou. Tudo bem lá em Lins?
– Igual, meu irmão mais novo, entrou na São Francisco, não
é o máximo?
– Uau! Parabéns, que maravilha.
– E por aqui?
– Agosto é meio devagar na fazenda. As vacas não entram no
cio, agora, na seca.
– Coitadas!
– Os bezerros ainda não começaram a nascer, precisamos
esperar as chuvas para começar a plantar, é só tratar do gado, este ano fizemos
mais feno, é abrir o fardo e deixar as vacas...
– Mariana! – Manuela segura a amiga pelos braços. – Tô lá querendo saber das vacas! Conta de
você, do Juliano, do casamento.
– Bom, não tem mais jeito, tá marcado, sábado, dezenove de
outubro e você é madrinha, tá!
– Oba! Nossa, você deve estar animadíssima!
– Claro, claro – Mariana arruma o cabelo, num gesto
nervoso. – Faz tanto tempo que era pra ser, agora vai! Precisamos arrumar um
padrinho para você.
– Bom, talvez eu já tenha o meu... Romeu!
– Não! Aquele chato de Campos? Não me diga.
– Para! Ele é bonzinho, faz tudo que eu quero. Me ligou, veio me ver, me mandou uma passagem, no próximo final
de semana vou conhecer a terra dele, tamo
namorando!
– Oh céus! – Mariana não quer acreditar.
– É verdade, Má! Ele foi candidato a deputado, só não foi
eleito por conta de uma tal de legenda, não entendi direito, agora foi indicado
para ser o Secretário dos Transportes, é coisa pra caramba.
– Ok.
– Ainda tá muito
no começo, boba! Também não tenho nada melhor pra fazer mesmo, vou levando, mas
me conta mais daqui.
– Juliano voltou do Goiás meio diferente, ainda não entendi
direito, tá mais firme, com mais pegada! Sabe cumé?!
– Ueba! – brinca
Manuela.
– Sei lá! Às vezes eu gosto, às vezes estranho. Ele está
mais confiante, meu pai deu mais autonomia pra ele, parece que deu certo.
– Como assim?
– Acertou tudo para o leilão, conseguiu até transformar aquilo
num evento beneficente. De onde será que ele tirou esta ideia?
– Vai saber! – exclama Manuela. – Nossas terras estão
arrendadas, álcool, você sabe; estamos livres desta trabalheira, que benção!
– Nossa! Você falou disso, lembrei, tenho mesmo que ir para
a Liberdade, teremos uma conversa sobre arrendamento, hoje.
– Seu pai? Duvido!
–Bom, uma usina fez uma oferta para ficar pelo menos com uma
parte da fazenda.
– Quem sabe, né?
– Quem sabe! Vamos almoçar no Juvenal? Sábado, pra comemorar sua chegada.
– Claro! Você vai poder?
– Acho que sim, daqui para frente vai ser uma loucura, mês
que vem Juliano deve voltar para a Felicidade, eu devo ir para São Paulo,
encomendar os equipamentos que faltam para a FIV, mas... tá marcado, eu te ligo.
Mariana levanta-se do sofá e pega seu boné.
Manuela acha divertido vê-la sempre assim, de “uniforme”,
botas de salto baixo, jeans, fivela de prata, camisa polo com o bordado da
Fazenda Liberdade. Combina com ela, magra, alta. O cabelo preto curtinho, os
seios sempre muito presos no top – para
montar, ela diz.
Manuela também se levanta para despedir da amiga, sobe em
seus inseparáveis saltos enquanto arruma os cabelos. Tem a boca grande e
vermelha; toda curvas, toda sexy. As
duas não poderiam ser mais diferentes.
Dirigindo de volta para casa, Mariana não esquece as fotos
da sua mãe, ficam passando no para-brisa como slides.
Novidade
– Seu Juvêncio, por favor! Explica para a minha mãe que eu
já sou grandinho, posso viajar sozinho, ela não tem nada que fazer lá no Goiás.
– Deixa ela ir, Juliano,
quando seu pai e eu fomos abrir a fazenda, Pia morou lá um tempão, deve estar
com saudade das comadres, né Pia?
Maria Pia, impenetrável e decidida, não dá trela, vai e
pronto.
– Pois então está muito bem, minha mãe! Se apronte que sairemos às três da manhã
– aceita Juliano, contrariado. – Vamos direto, me arrependi de ter parado na vez passada, a estrada tá boa, o tempo tá seco, dá pra ir
direto.
Maria Pia e Juvêncio se olham, ignoram a provocação de
Juliano e saem cada um para seu canto.
Chegam a Pitanga de noitinha, Juliano para no posto, Renê
está esperando com o marido, Pia vai ficar com eles.
– Rubão! Vou na
vila. As contas pra pagar, alguma que
eu não saiba?
– Não, Juliano, o de sempre. Ah! O doutor pediu pra você
passar lá do consultório dele.
– Oi, Rê, bom dia. Acho que o doutor quer falar comigo.
– Oi, Juliano, venha comigo.
Juliano segue a atendente até o consultório, ela bate de
leve.
– Entre.
Ela abre a porta e coloca Juliano para dentro, fecha a
porta atrás dele.
– Oi, Juliano, estamos acabando aqui – Bob dobra uma
receita e entrega ao velho sitiante, que cumprimenta ambos e sai, levando seu
chapéu.
O médico levanta-se e aperta a mão de Juliano.
– Sente-se, por favor, fez boa viajem?
– Fiz! Um pouco longa, né?
– Você tem razão, quando vim, achei que não chegaria nunca
mais. Também daí fiquei, não saio daqui para nada. Faço tudo pela internet.
Quero dizer... quase tudo, mas você deve querer saber por que chamei você aqui.
– É!...
– Bom, o assunto é meio delicado, vou começar pelo começo. Rachel
está grávida.
No caminho, isto já tinha passado pela cabeça do Juliano, a
sala parece rodar, voltam seus pensamentos recorrentes. “Não, imagina! Uma veizinha, na piscina. Ela também deveria
saber se cuidar, filha de médico. Dezessete anos, sua anta! Dezessete! Ai meu
Deus!”
As mulheres vão ficando grávidas aos poucos, sentem uma
coisinha aqui, outra ali. O homem não, é ali, na lata.
Juliano está justamente neste momento, sua adrenalina foi a
mil, o tempo parou.
Roberto passa a mão nos ombros do jovem e continua:
– Bom, vejo que você está um pouco confuso, é natural. Nós
todos também ficamos, Rachel está mais calma agora; estava sem jeito de falar, não
queria que eu falasse com você. Bom... enfim.
– Mas, doutor, a gente só fi...
– Acontece. Olhe, Juliano, eu tinha que começar isto de
alguma forma; a segunda coisa que quero dizer é que nem eu nem Rachel estamos
cobrando nada de você.
– Mas..
– Ela me contou tudo, sabia que você está noivo, que não a
enganou, nem nada, simplesmente aconteceu. Eu sou homem, sou médico, evidente
que não era o que eu queria para minha filha, mas, enfim, tenho que entender. O
que eu não quero é fazer disso uma desgraceira. Parece que você é mesmo o pai,
uma hora ou outra teria que ficar sabendo, é isto.
– Mas, doutor, não tem o que fazer?
– Juliano – diz o doutor com gravidade. – Minha filha quer
ter este filho.
– Eu entendo.
– Quando eu olho para trás – continua Bob –, a única coisa
boa que me aconteceu foi a Rachel, foi ter uma filha. Como posso ser contra?
Não tem casamento? Não era este o plano? E daí? Adiantou meu casamento?
– É que, que...
– Eu lhe digo que não! Também não sirvo de exemplo para
ninguém, mas se eu pudesse apagar tudo e deixar só Rachel, faria na hora. Vai
saber?
– Mas, doutor...
– Meu filho, eu já sei. Você tem um compromisso. Se isso for
o mais importante para você, siga o seu caminho; nem minha filha nem eu
queremos nada de você. A criança será muito bem cuidada, fique tranquilo quanto
a isto.
– Eu queria...
– Falar com Rachel, claro, ela está em casa, passe por lá.
– Tchau, Rê, obrigado.
– Tchau – despede-se a atendente.
Juliano está tonto, entra na camionete, sai para a estrada.
Na sua cabeça, volta a ladainha de Maria Pia – Meu filho, cuidado! Você não é
mais um João ninguém, foi duro chegar até aqui, este mundo está cheio de mulher
esperta querendo pegar um tonto, veja lá o que você vai me aprontar! Tome
cuidado, Juvêncio trata você com esta tranquilidade porque ele conhece a filha,
conhece você, os pais por aí não costumam ser assim, te matam.
Bom, a reação de Bob na verdade foi desconcertante, Juliano
estava surpreso pela gravidez inesperada e pelas palavras do pai da moça. Moça!
Sei! Bem esperta dona Rachel.
No meio deste rodamoinho de pensamentos, chega à Paraíso. Rachel
continua cuidando do seu jardim, vem receber Juliano, sem graça.
– Oi – diz Rachel.
– Oi, tudo bem? – responde Juliano.
– Tudo, quero dizer... tem esta novidade.
– Novidade e tanto, eu diria.
– Claro, vem cá, cê
tá branco, vou lhe fazer um café.
Juliano senta, tira o boné e os óculos escuros, aperta os
olhos. Rachel tem um uma torta de abóbora pronta, serve um pedaço para Juliano.
Serve o café e senta-se com sua caneca em frente a ele.
– Olha, Juliano, não sei bem o que dizer, nem queria dizer
nada, meu pai é que se precipitou.
– Precipitou-se?!
– Você deve estar me julgando a pior mulher do mundo e era tudo
que eu não queria. Aconteceu! No dia seguinte, eu fui olhar minha tabelinha,
meu pai é médico, faz tempo que ele me ensinou, eu marco tudo na agenda. Não
tinha chance de eu engravidar, fiquei tranquila, daí aconteceu.
– Sei.
– Tá vendo, eu tinha razão! Deveria ter ficado na minha e
pronto, você não vai entender nunca, ninguém vai. Eu gostei de você. Rolou, eu
gostei muito, mas nem tava pensando
em nada, pra mim, você ia casar e eu, seguir minha vida. Nem sabia se queria ficar
por aqui, quanto mais engravidar.
– Isto complica um pouco a minha vida, não acha?
– Não! Você, como
todo mundo, aliás, acha que eu quero te prender? Pois fique tranquilo, eu não
preciso disso, meu pai é médico, minha mãe é rica. Minha vida continua,
mulheres têm filhos. De mais a mais, você é bonito, mas também não é o rei do gado!
A explosão da moça assusta Juliano, mas já passou, ela tira
com a mão uma lágrima do canto do olho e se serve de mais café.
– Mas seus estudos, a faculdade?
– Faculdade! Meus pais são pós- graduados, deu no que deu.
Vou acabar meu colegial, ter meu filho, cuidar dele. Cuidar do meu pai, do meu
ma... quero dizer, não sei, uma coisa de cada vez.
Juliano não sabe mais o que dizer, finalmente experimenta a
torta que estava na sua frente. Mastiga lentamente para ganhar tempo. Nunca
tinha provado nada igual antes. Um gosto picante e envolvente enche sua boca,
elogia Rachel:
– Nossa! Que gostoso, diferente, o que é que tem aqui?
– Bom, um monte de coisa, peguei a receita no meu livro de
inglês, é a torta tradicional do dia das bruxas por lá.
– Bruxas é?!
– Para! Bobo, vai dizer que não gostou?! Tem um monte de
coisas, gengibre, cravo canela e casca de limão.
Casca de limão! Veja
só, quem diria, tem gosto mesmo.
– É tipo um tique nervoso, quando estou preocupada, vou
para cozinha e começo uma receita bem complicada, penso melhor cozinhando!
– Sei como é, minha mãe também.
– Quer mais um pedaço?
– Claro!
– Pia, minha amiga – insiste Renê –, pare com isto, todo
mundo já viu, você insiste em não enxergar. Estes dois são a corda e a caçamba.
Você sabia que ela tem mão para cozinha?
– Deixa de bobagem, Renê, mal se conhecem. De onde você
tirou isto?
– Juliano ficou aqui um tempão programando o leilão, lembra-se
disto?
– Claro!
– Então, eles vieram falar comigo. A estrutura do recinto daqui
é precária, não daria para receber todos os convidados. Rachel já tinha
trabalhado num evento em Uberaba, sugeriu que o pessoal das barracas servisse o
leilão, cuidasse da entrada, estacionamento, transformasse numa festa
beneficente.
– Escutei algo a respeito, você devia saber que isto não ia
dar certo, olha aí no que deu!
– Você precisava ver os dois juntos, Pia, que entusiasmo,
que dupla! Convenceram todos, o prefeito, o padre, todos. Vai ser um sucesso
para vocês, uma conquista para a cidade.
– Para, Renê! Uma coisa é trabalho, caridade, outra coisa é
esta sirigaita pegar barriga do Juliano, noivo, casamento marcado, vagabunda!
– Estas coisa acontecem, o Juliano é atraente, a moça
gostou mesmo dele, vai me dizer que você não sabe como é?
– Renê, eu contava com você.
– Eu sei, eu não sou tonta. Vi na hora, peguei ela num canto e expliquei tim tim por tim tim. O moço está noivo, assim e assim! Gostei de você, mas a
mãe dele é minha comadre, não vá fazer besteira. O menino decerto gostou do
cheiro! – e Renê ri com gosto, chacoalhando sua fartura de carnes.
– Renê só você mesmo para rir uma hora desta, a mãe da
menina botou os chifres na cabeça do marido, acabou com o homem, olha só pra ele, não sobrou nada.
– Pare com isto, comadre, os filhos são diferentes dos
pais, não a julgue por isto. Sou bem capaz de pensar que esta menina viu tanta
desgraça que poderia dar uma ótima esposa.
– Até parece que você sabe tudo! – reclama Pia.
– Não se esqueça de que sou filha de santo! Tem muita coisa
que você não sabe!
– Valei-me, meu Jesus, Ave Maria! Para com isto, Renê. Detesto
quando você fala assim.
– Este casamento tornou-se uma obsessão para você, não é
Juliano que quer se casar com a Mariana, é você.
– Renê do céu! Você perdeu o juízo! Esqueceu-se da gente
catando flor de abóbora pelas cercas pra fazer empanadinha? Tinha dia que era a
única mistura que a gente conseguia pôr
na mesa.
– Eita tempo bão. Que boa ideia! Vou fazer pra gente comer, vem me ajudar a
apanhar.
– Você quer me enlouquecer de vez, Renê! Eu aqui me
consumindo e você quer comer cambuquira?
– Quer saber mesmo, Pia? A Mariana é ótima, mas me desculpe,
não tem nada a ver com o Juliano. Isto não vai mudar depois do casamento. Você vai
querer o menino andando atrás da outra, o resto da vida numa coleira? Não, não
vai, não somos mulheres para isto!
– Mas o compromisso Renê, a segurança?
– Você está certa, estas crianças não passaram o que
passamos. Pra eles tudo é fácil!
Diferente de nós duas, pra gente o
importante sempre foi melhorar, claro! Não tínhamos nada. Mas e nós? A nossa
vida? Só na próxima, porque nesta! Não com este corpinho! – e a baiana ri com
gosto.
– Não acredito! – bufa Pia, atrás de Renê, colhendo flores
de abóbora.
– Rubão – chama Juliano –, vamos separar a cabeceira destes
bezerros, vamos vender este lote no leilão da Liberdade.
– Esta bezerrada tá
chique mesmo, vai ser um sucesso, a turma tá
muito entusiasmada com o leilão, com a festa e tudo mais.
– Mesmo?
– Tão falando que agora... bom, você sabe, que você vai
ficar mais por aqui, tão falando até em você para vereador!
São Paulo
– Doutora Mariana, se a senhora me permite, vejo que faltam
vários itens nesta sua lista de equipamentos, que protocolo as senhora vai...
– Você é que não está me entendendo, acontece que já tenho
boa parte destes equipamentos.
– Muito bem, então vamos lá, começando pelas...
– Mariana! Que surpresa boa é essa?
– Rô, que prazer! Tentando montar um laboratório. E você?
– Trabalhando aqui, você não sabia? Pode deixar, Raul, eu
acabo de atender doutora Mariana, obrigado.
– Pois não, doutor Ronaldo; muito prazer, doutora Mariana –
despede-se o vendedor, contrariado.
– Nossa, que bom! Não nos vemos desde Piracicaba, mas
porque esta mudança assim radical?
– Santinha, aquele povo da minha terra é muito difícil, não
dou mais conta! Venha, vamos almoçar, depois a gente volta e vê isto?
– Que bom, aquele vendedor é muito chato, você chegou na
hora.
– Almoço no Spot! Assim do nada?
– Aproveita que o laboratório é que está pagando, minha
querida.
– São Paulo é bom demais, acho que dá para passar um tempão
aqui sem repetir um restaurante. Falando em restaurante, conheci um camarada lá
da sua terra.
– É mesmo! Quem?
– Um engenheiro, Romeu, político, eu acho.
– Não tô falando!
– e Rô faz uma cara feia.
– Para, Rô! Acho que tá namorando uma amiga minha.
– Nossa, só de pensar me enche de urticária, olha!
– Rô! Como você é cruel!
E Ronaldo despeja tudo, o tal é filho de um homem influente
na região. Este, sim, com uma história de luta, foi senador, acumulou fortuna.
Sonhava ter um filho que continuasse seu trabalho, teve cinco meninas,
finalmente veio o rebento; foi criado como um príncipe, não vale nada. O pai
empurra, faz força, mas é um desastre.
– Puxa, mas o que é que ele quer com minha amiga?
– Por lá, cargo no governo, tem que ser casado, ter esposa!
– Jesus, Maria, José! Pobre Manuela. Mudando de assunto,
acho que você fez bem em mudar-se mesmo.
– Graças a Deus, minha vida agora é aqui – Reinaldo levanta
seu copo. – Tá vendo esta taça? Está cheia de água, se eu quero vinho, tenho
que tirar a água, concorda?
– Claro – concorda Mariana. Você tem razão, nosso coração é
um só.
– Menina! Nem te conto, chega de filosofia. Estou no
laboratório só mais este mês. Vou trabalhar no Jóquei.
– Sério?
– Mas é chique dum
tanto! Você não acredita como aquele povo é fino, elegante, achei minha praia!
– Nossa, Rô, que virada, parabéns! Puxa, esta entradinha de
cabotiá com gengibre está uma delícia, vamos tomar uma taça de vinho?
– Quer mudar?
– Quero!
Mariana foi para o hotel. Rô tinha conseguido deixá-la
preocupada com a amiga, nas mãos daquele Romeu de araque, e chateada consigo
mesma por não pensar um pouco mais em si mesma, procurar sua felicidade com
mais determinação.
Uma chuvinha fina e insistente escurecia o céu, São Paulo
estava mais cinza do que nunca, ainda era dia, as luzes já estavam acesas. O
vermelho dos sinais e das lanternas ensanguentavam as ruas molhadas. Aquilo
sempre deprimia Mariana.
Na janela do hotel, os aviões baixando e subindo em
Congonhas, a chuva estava mais forte e as luzes vermelhas continuavam lá, no
asfalto molhado.
Mariana espalhou os orçamentos sobre a cama, abriu o
computador. Meu Deus, como aquilo era chato, quantas decisões para tomar.
Os homens não tinham ideia daqueles detalhes todos. Para
eles, era só FIV pra cá, FIV pra lá. Para ela, microscópios de sei lá
quantas vezes, balanças de sei lá quantos miligramas, erlenmeyers. Que porre!
Ninguém para trocar uma ideia, uma opinião. Deles, só
escutava, claro, claro, claro! Não ajudava nada, aquilo era muito solitário.
– Puxa vida! – pensa alto Mariana. – O Rô, de julho pra cá,
saiu lá da terra dele, veio aqui para São Paulo, já arrumou o emprego dos
sonhos dele, tudo com a cara, a coragem e o curso que fizemos juntos! Eu, aqui,
cada vez mais atolada nesta chatice. Isto é pura vaidade lá do meu pai, isso
sim!
De noite, chove mais forte, os aviões não param, os carros,
na avenida, parecem um rio barulhento, Mariana rola na cama, naquele cobertor
de hotel, nojento.
Os próximos meses passam na sua cabeça como um filme. Ela,
enlouquecida, tentando fazer o projeto funcionar; no meio disso, seu casamento.
Ela, mal humorada, dando patadas para todo lado. Juliano, como um autômato, tentando
não errar. Ela, na fogueira, e seu pai, cada vez mais distante.
Sozinha no salão do café da manhã, não consegue suportar os
risos, a alegria dos hóspedes. Eles, aproveitando, confiantes, alegres. Ela,
querendo morrer.
Hoje é dia de procurar um vestido de noiva, pronto e
prático. É isto.
Mariana chega no seu limite, deita-se de cara no
travesseiro e chora. Não dá mais. Comprar um vestido de noiva, sozinha e
correndo, debaixo de chuva, é a gota d’água.
– Quero antecipar meu ticket,
para o próximo voo disponível.
O avião decola para dentro da chuva insistente – Mariana
pensa e repensa. “Adiamos uma estação ou fazemos só um teste, este ano, não
estou certa que isto é o melhor para nós. Precisamos rever tudo, inclusive o
casamento, eu não estou pronta”. Pronto, é isto.
– Senhores passageiros, bem vindos a São José do Rio Preto,
o tempo é bom e a temperatura é de 36 graus, gratos por voarem conosco, boa
tarde.
Mariana ainda está vestida para São Paulo, transpirando,
retira a camionete do estacionamento, joga suas coisas dentro, chama a fazenda
pelo celular.
– Pia? Não? Sei, claro que sei, a mulher do Jurandir, tudo
bem com você, cadê a Pia? Goiás? Ela não voltou com o Juliano? Que estranho. Entendi,
eles foram para Nova Gênova, devem voltar logo, sei. Bom, eu chego no final do
dia, preciso falar com meu pai e com Juliano. Você avisa? Por favor, obrigada. Ah!
Sei, faça qualquer coisa, estou meio enjoada, nem sei se vou querer jantar,
desculpe. Tchau.
Na dúvida, a verdade
Juliano e Juvêncio estão chegando a Nova Gênova para cuidar
dos Editais de Proclamas.
– Juliano, você está querendo me dizer alguma coisa?
– Estou sim, Seu Juvêncio – Juliano para a camionete no
acostamento.
– Pois então fala, desembucha, homem de Deus.
– Seu Juvêncio, o
senhor é pai de Mariana, eu nem tenho o que dizer, eu fiz uma besteira –
Juliano prossegue desesperado. – Tá
feita, qualquer que for sua posição, estará certa para mim. O senhor também é a
minha família, sempre me deu conselho. Desta vez, eu é que tenho que resolver,
eu sei. O senhor não merece isto, muito menos Mariana!
E Juliano conta tudo, do começo, abre seu coração com o
velho fazendeiro. Como conheceu Rachel, como aconteceu, o que falaram, seus
temores e sua insuportável angustia.
– Bom, eu já estava sabendo por cima, tenho que admitir que
minha maior preocupação ainda é a Mariana.
– E o senhor está certo.
– Parece que você tem tudo controlado, mas eu não sei qual
será a reação da minha filha. De cara, lhe
digo que não vai ser nada boa, depois não sei.
– Seu Juvêncio,
controlado nada, eu estou com mil coisas na minha cabeça. Também não acho que
Mariana vai me perdoar. Mesmo que case comigo, vou ter que carregar isto para o
resto da vida.
– Mesmo porque tem uma criança... tem a mãe da criança.
– Isto também me deixa louco, Seu Juvêncio, o sonho da
minha vida era ter um filho. Quando eu tava
lá naquela cama de hospital, mais pra
lá do que pra cá, eu vi uma luz e eu pedi.
“– Minha Nossa Senhora, me ajuda, eu queria viver mais, queria ter um filho.”
Ela me atendeu.
Juvêncio instintivamente repara na imagem da santa
costurada por dentro do boné de Juliano, em cima do console da camionete. O
moço continua agoniado.
– Agora, me acontece assim, o senhor já pensou a
mãe do menino casada com outro homem, ele ali junto com meu filho – e Juliano
desaba no choro.
– É melindroso mesmo.
– Oh meu Deus! Eu tenho que dar um jeito nisso. Acho que só
acabando com minha vida.
Um dia mais difícil
Mariana coloca a camionete no piloto automático, não conseguiria
manter-se na velocidade, a estrada está cheia de radares. A viagem parece em
câmara lenta, não chega.
Repassa mil vezes sua fala, pretende começar explicando as
dificuldades do processo, as diversas variáveis envolvidas... bullshit! Tô de saco cheio desta merda e pronto.
O trecho de terra até a fazenda está péssimo, toma cuidado
com os bancos de areia, finalmente chega à Liberdade. Estaciona ao lado da
camionete de Juliano, pega só sua mochila, a carteira, entra na sede e tira os óculos
escuros.
Encontra seu pai e Juliano, sérios, sentados à mesa, o
noivo tem as mãos juntas ao lado do boné, o ar de seu pai também é grave.
Mariana sai do transe das últimas horas e se assusta.
– O que foi?! O que aconteceu, cadê a Pia?
– Calma, minha filha, Pia está bem, fez boa viagem?
Sente-se, por favor.
Mariana senta-se na ponta da cadeira segura as mãos de
Juliano. Os olhos dele estão vermelhos, sua face tensa, pode ver as veias do
pescoço saltadas.
– Falem, pelo amor de Deus, estou ficando louca!
Juliano continua mudo, Juvêncio começa.
– Minha filha, é grave, mas não é o fim do mundo, Juliano
fez uma besteira, conheceu uma moça lá em Pitanga, ela está grávida, pronto, é
isso.
Mariana solta as mão de Juliano, ele levanta a cabeça, seus
olhos enchem-se de lágrimas, ele continua mudo, tem a boca crispada, querendo
dizer algo, não sai.
– É verdade, Juliano?
O noivo só consegue afirmar de leve com a cabeça.
– Por favor, acalme-se minha filha, Juliano me explicou
toda a situação, ele tem tudo sob controle, quer honrar o compromisso que tem
com você.
– Compromisso? – Mariana está possessa. – Você acha que
compromisso é isso? Juliano! Compromisso é isso? Foder uma puta até ela
engravidar? Aproveitar-se da minha de lealdade, é isto, Juliano? Depois ainda prender-me
num casamento sem sentido? Você está louco ou é estúpido mesmo?
– Não era para ter acontecido – balbucia Juliano.
– Meu Deus do céu! Isto é um trote, não é? Um pesadelo,
qualquer coisa. Eu não acredito! Será que homem só existe pra fazer merda?!
E os homens não dizem nada, dizer o quê? Mariana continua.
– Sumam da minha frente, não quero ver vocês nunca mais!
Antes que eles se levantem, Mariana pega suas coisas, sai
da casa correndo, entra na camionete e parte em disparada.
Mariana para em frente à casa de Manuela, está tudo
fechado, ela ainda não deve ter voltado da escola. Espera.
Respira fundo, segura o volante com as duas mãos e descansa
o rosto sobre ele. Fica assim por um tempo, está muito cansada, quer dormir, as
imagens rodam na sua cabeça, o idiota do Juliano, o pai do lado dele, como pode
apoiá-lo?
– Má? Você veio me ver? Que carinha é esta?
– Oi, Manu, é, cheguei de viajem, passei para te dar um oi.
– Vem cá, vou te dar um suco, parece que você trombou com
um caminhão, entra vem.
Aos poucos, Mariana se recupera e conta sua triste história
para Manuela:
– Enfim, é isso, agora aqui, falando com você, já nem sei
se estou triste, com raiva ou aliviada, quer saber!
– Toma mais suco, olha, sua cor está voltando.
– Então, daí fiquei pensando, acho que estarei mais livre daqui
para frente, você já deve estar quase de férias, a gente foi lá para Campos,
foi tão legal, podíamos viajar de novo, que tal?
– Nossa! Má. Seria ótimo, mas eu também tenho uma notícia,
só que a minha é boa.
– Como assim? – pergunta Mariana.
– O Romeu me pediu em casamento, estamos noivos, ó minha aliança! – Manuela vê a decepção
da amiga e tenta consertar. – Quero dizer, você acabou de romper seu noivado,
desculpe...
– Mas, Manu, o Romeu?
– É! O Romeu. O que é que tem?
– Será que ele é mesmo o ideal para você? Casar assim de
repente!
– Sei lá, Má, você estava para casar, caçando um padrinho pra me acompanhar, é humilhante, me senti muito só. Ele me enche de
presentes, nunca tinha andado de avião, aceitei, oras!
– Manu! Presente? Avião?
– É! Avião! Minha família está supercontente, o pai dele, o
senador, me adorou. Sabe, Má, nem toda mulher é rica, independente, assim como
você, esta pode ser minha melhor chance. Dá pra você entender?
– Claro, claro. Parabéns, então, bacana. Bom, tenho que ir,
acordei em São Paulo, ainda nem cheguei direito.
O telefone toca na Fazenda Liberdade.
– Juvêncio? Maria Constância, tudo bem por aí?
– Oi, Cotinha. Meio complicado, você sabe da Mariana?
– Está aqui comigo.
– Graças a Deus! Ela está precisando de algo? Posso levar.
– Acho melhor não, dei um calmante para ela, agora dormiu,
depois a gente conversa.
– Claro. Obrigado, minha irmã, Deus lhe pague.
Entressafra
– Mariana, minha querida, seu pai está aqui para vê-la.
– Tia Cotinha, já disse, não quero ver ninguém, manda ele conversar lá com o queridinho
dele, o Juliano!
– Venha, meu anjo, dê uma chance ao seu pai, ele está
sofrendo – aconselha Maria Constância.
– Tá bom, mas você fica comigo.
– Minha filha, venha cá, me dê um abraço.
Mariana recebe o abraço do pai com os braços caídos, sua
face encosta-se em seu peito, mas ela está muito magoada.
– Sabe, pai, o Juliano, eu até entendo, ele é leso mesmo,
tá cheio de vagabunda por aí, uma hora ele ia acabar caindo. Agora, você...
– Minha filha, Juliano não é leso, a menina não é uma
vagabun...
– Tá vendo, tia
Cotinha! – grita Mariana. – Eu não tenho nada que conversar com meu pai, ele
ainda fica do lado deles. Era isso que eu estava dizendo. Meu pai! Numa hora dessas,
ainda fica do lado do outro. Adianta pra alguma coisa? Vai lá com seu
queridinho, com seu futuro neto! Com a Pia, ai que ódio dela! Falsa! “– Sou sua
mãe minha filhinha, faço tudo por você! Nhe,
nhe, nhe!”. Não teve a coragem de mostrar as caras, Judas! Quer saber? Estou
melhor, caíram-se as máscaras, agora pelo menos eu sei o que tenho e o que não
tenho, ou seja, nada!
– Mariana! – interfere Cotinha. Você é uma mulher adulta,
instruída, pare com esta criancice, chega desta autocomiseração, encare os
fatos, minha filha.
– Pois está muito bem – responde Mariana. – O que mais os
senhores esperam de mim? Uma declaração de corna? Uma carta de aceitação do
bastardinho?
– Minha filha, por favor! Continuamos as mesmas pessoas,
aconteceu algo grave, mas temos que lidar com isto.
– Depois do acidente do Juliano – continua Mariana em
prantos –, você mudou, meu pai, você se culpa! Juliano pode fazer o que quiser,
está tudo bem para você.
Cotinha abraça a sobrinha, coloca panos quentes.
– Agora você está sendo injusta com seu pai, minha filha,
claro que sua maior preocupação é você, não é Ju?
– Claro que é, Continha, ela sabe disto muito bem.
– Minha filha – continua Cotinha –, isto acontece a toda
hora, claro que quando é com a gente, fica mais difícil.
– Mariana – insiste Juvêncio. Você precisa ver o estado do
Juliano, está pior que quando levou o coice coitado, por pouco não se mata.
E o tempo foi passando, a vida voltando ao normal.
Claro que não haveria clima para continuarem na fazenda, o
arrendamento para cana foi um alívio. Mariana não queria voltar para aquilo.
Juliano queria voltar para o Goiás e Juvêncio queria mesmo era ficar com a
namorada.
Parte do plantel da Felicidade iria para o leilão em Pitanga.
A cabeceira do gado da Liberdade, muito melhor, ocuparia o lugar.
O leilão estava ficando cada vez maior, Juvêncio foi para
lá, levou a namorada. Juliano também foi, talvez para sempre.
Mariana ficou na Liberdade, com Jurandir e a esposa,
arrumando a fazenda para entregar para a usina.
– Regine! – exclama Mariana. – Que bom que você chegou,
venha, venha, entre, venha ver a Liberdade.
Regine está emocionada, acompanha Mariana pelos cômodos da
casa, em transe, para no escritório de Mariana.
– Era aqui que sua mãe escrevia, não era?
– Acho que sim, não sei, não me lembro.
As lágrimas brotam nos olhos da francesa.
– Mariana, me desculpe, ver você aqui, você é muito
parecida com sua mãe, ela me escrevia, eu sabia que ela estava triste, suas
cartas eram sempre como se se despedisse de mim. Eu segui com minha vida, você
sabe como é, minha mãe, meu marido, outro país. Como eu sinto por isto agora,
daria tudo para voltar no tempo, ficar com ela mais um pouco. Desculpe, querida,
já vai passar.
Mariana senta Regine no pequeno sofá sob a janela e vai
buscar água com açúcar.
– Obrigado, querida, está bom, podia ser um conhaque, mas
estou melhor, obrigada – recupera-se Regine.
– Nossa, você me assustou.
– Pronto, pronto, passou. Estou ótima, eu vim para ajudar
você e já começo dando trabalho, passou, me
deixa ver você.
– Será que você sobreviverá aqui? – brinca Mariana.
– Bom, trouxe duas caixas daquele cabernet que você gostou, umas tantas garrafas de gin! Mais uns
temperinhos, posso cozinhar, já vi uns galos bem gordinhos, tem até um ganso.
– Meu Deus! O Rubião!
– Minha querida, os franceses olham para os bichos e já os
veem tostadinhos na assadeira, você não sabe disso?
– Mariana, vai me desculpar – comenta Jurandir –, mas sua
tia é maluca!
– Tá falando da Regine? O que foi, Jurandir?
– Você me mandô
pegar os frangos pra ela. Corri, corri, peguei dois no ponto. Daí, ela me
disse: “– Nom, Nom! Querro os grandom!”
Mariana se diverte a imitação do sotaque. Jurandir continua.
– Dona Regine, mas isto é galo, duro pra caramba! E ela “– Nom, nom, querro estes mesmo.”
– E daí, Jurandir?
– E daí que eu não ia ficar discutindo com a madame, no
terreiro tem um monte de galo, ninguém quer, foram ficando, seu pai odiava eles por causa da cantoria no meio da
noite. O galo mesmo, o do terreiro, esse eu deixei, peguei outros dois e torci
o pescoço deles, ela adorou, prepare-se, patroa, que aquilo é um pau, não dá pra comer!
Finalmente, Mariana voltou a rir.
Regine, vestida com uma de suas túnicas indianas, longas e
coloridas, os cabelos presos por um lenço, refoga os pedaços do galo.
O fogão de lenha está a todo vapor; como frigideira, usa um
disco de grade de aço, grosso, pesado e grande, com o furo fechado e sem cabo. Colocou
bacon e manteiga para fritar, o cheiro é delicioso. A mulher de Jurandir
descasca pequenas cebolas e olha admirada.
– Que cheiro bom! – elogia Mariana.
– Minha filha, você vai comer um Coq au Vin! Comme il faut!
Regine joga um pouco de farinha sobre o galo, frita mais um
pouco e muda para uma panela onde outros pedaços já cozinham no vinho tinto,
depois começa tudo de novo. Ainda vai colocar as pequenas cebolas, alho, nós
moscada, conhaque, champignons e
tomilho que trouxe em sua bagagem.
– Pensei em arrumar a mesa lá fora, está uma noite
agradável, que tal? – sugere Mariana.
– Perfeito! Teremos mais alguém, sua amiga vem?
– Nada, noivando!
As noites no começo de dezembro ainda são
surpreendentemente frescas no sudeste brasileiro. A varanda da Liberdade é
grande, tem uma parte que avança fora do telhado, no mesmo nível da casa, mais
alta que o terreiro em frente, dá para ver as luzes da cidade lá longe e as
estrelas cá em cima.
– Regine, meus parabéns, você se superou, está uma delícia.
– Adoro estes fogões de lenha, claro que precisa ter uma
santa criatura para lavar tudo depois, mas o gosto é outro.
– Esta cozinha é boa mesmo.
– Minha filha, vocês já cuidaram das questões práticas,
digo, quem cuida do quê?
– Bom, a Liberdade já era minha por herança, esta fazenda
era da minha mãe, meu pai ficou com a Felicidade, que também era dela, é muito
maior, mas quando eles casaram não valia muito.
– Se é maior, um dia vai valer mais do que aqui – nota
Regine.
–É verdade, mas Juliano tem uma parte dela, vai ser
confortável para mim, não lidar com isto agora.
– Que bom.
– Não posso reclamar, vou ficar com a renda do leilão por
conta da minha parte no gado e com o arrendamento da cana, que já começa a
entrar este mês. Dona baratinha, finalmente, tem dinheiro na caixinha!
– Lindinha! E os ânimos?
– Juvêncio me ligou hoje – fala Mariana enquanto serve
vinho para Regine. – Mandou um beijo para você.
– Que gentil, obrigada. Como estão, afinal?
– Ótimos, pelo jeito. O leilão foi um sucesso, o
acontecimento do ano em Pitanga. A namorada do papai adorou a Felicidade e acho
que ele gostou da namorada do Juliano.
– Sério?
– Ainda estão cheios de dedos comigo, sabe como é, mas
enfim, disse que ela cozinha bem e é mandona. Deste tipo de mulher que gosta de
comandar a casa. Igualzinha à Pia, pode?
– Minha filha, esta é a regra, os homens passam a vida
procurando a mãe. Por pior que elas sejam!
– Pois parece que ele achou, eu nunca consegui fazer um
café mesmo. Tomara que dê certo – suspira Mariana.
– Você também é mandona, Mariana.
– Pensei nisto, mas é diferente, autoritária acho que me
descreve melhor. O pessoal brincava que eu parecia a Maninha, só faltavam os
chifres, bom, agora...
– Pare, minha filha, não fale assim.
– Você sabe, a Maninha era minha vaca holandesa, veio pra ser a “vaca de leite” da fazenda, era
diferente, foi criada no meio da nelorada,
não se sabe por quê, recusou-se ou não deu conta de cumprir sua sina. Era
altiva demais.
– Mariana, você fala desta vaca como se ela fosse gente!
– Acho que era minha mãe que voltou, morreu de novo, agora,
que eu estava pronta para entender. Não preciso aceitar o que quer que tivessem
escrito para mim.
– Minha querida, depois daquela “coisa” que eu tive quando
entrei na biblioteca, acho que tudo é possível por aqui!
Mariana continua desmontando a fazenda, a usina ainda não ocupou
as terras, Jurandir quer continuar morando e cuidando das instalações. Já tinha
umas vacas num terreno arrendado, tira o leite, sua mulher faz queijo, vai
aproveitar as áreas que a usina não plantará cana-de-açúcar para continuar seu
negócio.
Vê a tristeza de Mariana. Cada cantinho da Liberdade tinha
um pouco do seu trabalho, cada equipamento instalado, as dificuldades, as
vitórias e, de repente, nada mais faz sentido. Dificilmente esta fazenda
voltará a produzir carne.
– Minha querida – fala Regine para Mariana. – Estou
adorando ficar com você, aqui na fazenda, mas no Natal, tenho os meus chatos
para cuidar. Já começou a cobrança! Você sabe como é?
– Se sei! Meu pai queria que eu fosse com a Cotinha para o Goiás. Imagina se tem clima pra isto.
– Não, acho mesmo que não, você quer vir comigo para São
Paulo?
– Obrigada, Regine, não teria sobrevivido sem você, agora
já estou melhor, vou ficando por aqui. Vai ser a minha vida.
– Não quero você deprimida, de novo!
– Quer saber, esta criança inaugurou uma nova geração, fez
a fila andar. Nos fez pai, tia e avós, todos nós crescemos. Tenho muito no que
pensar – suspira Mariana.
– Minha receita continua a mesma, tire umas férias, minha
querida. Desta vez, vá para Paris, você fica lá em casa, o apartamento da
Victor Hugo está vazio nesta época do ano.
Natal
– Vai tranquilo, Jurandir, a sua viagem está combinada faz
um tempão, vá ver sua família, eu ficarei bem.
– Mas Mariana, as coisas mudaram, não podemos deixar você
aqui sozinha no Natal, depois de tudo que passou, coitada.
– Xô, xô, que
aqui não tem coitada nenhuma, seu primo e a mulher dele não vão ficar cuidando
das suas vacas? Se eu precisar de algo eu peço, me viro, se manda, Tchau! Bom Natal!
Mariana abriu o freezer, tirou uma embalagem de Coq au Vin que Regine tinha congelado
para ela. Tomou banho, foi para o computador, ia jantar cedo, ver um pouco de
televisão e dormir. Quanto antes acabasse, melhor, já não gostava do Natal
antes, era triste sem sua mãe, agora então, pior.
Toca o telefone.
– Má?
– Manu! Tudo bem? Feliz Natal para você! Onde você está?
Manuela não responde, está muda do outro lado do telefone,
parece que está chorando.
– Manu! Cadê você, onde você está?
– No aeroporto de Rio Preto.
– Com quem? Fazendo o que aí?
– Sozinha – rompe em prantos Manuela.
– Cadê seu noivo?
– Ele me bateu...
– Para de chorar, me
conta como você está, pra onde você
quer ir?
– Tô mal, não sei
o que fazer, não quero chegar na casa
dos meus pais assim. Acho que eu estou com febre.
– Me escuta,
Manu, preciso de uma hora, um pouco mais, para chegar aí, você consegue me
esperar?
– Acho que sim, já estou aqui faz um tempão.
Mariana desliga o telefone, enfia algumas coisas na mochila
e sai com sua camionete, voando no meio da noite.
Quando chega ao aeroporto vazio, logo vê Manuela sentada
numa das poltronas, está irreconhecível, parece menor, encolhida, os cabelos
louros presos, desarrumados, os óculos escuros não conseguem esconder os
hematomas do seu rosto.
Mariana abraça a amiga num misto de revolta, desespero e
culpa, ela deveria ter sido mais presente, sabia quem era Romeu.
– Venha, meu anjo, deixa que eu trago sua mala.
Manuela arde em febre, Mariana dirige direto para o
hospital.
– Estas marcas parecem de agressão – diz a médica –, eu
preciso saber o que foi, comunicar a Delegacia da Mulher.
– Foi um acidente – responde Manuela. – Por que eu estou
com tanta febre?
– Aparentemente, não tem nada com seu “acidente”, está me
parecendo dengue.
A doutora olha para Mariana, continua.
– Ela deve ficar sob observação e tomar um antitérmico que
não seja aspirina, se não melhorar até amanhã, voltem aqui. Se mudarem de ideia
sobre o “acidente”, me avisem.
– Eu sou muito fudida
mesmo. Dengue?! Ninguém merece – reclama Manuela. – Desculpa, Mariana, não
queria te dar este trabalho todo.
– Nem pense nisto, venha, vamos procurar um hotel, amanhã
você estará melhor.
Manuela finalmente se entrega aos analgésicos, ao cansaço,
à dor das últimas horas e dorme um sono agitado, transpira que encharca os
lençóis.
Mariana controla sua febre, continua lhe dando o remédio,
enxugando sua testa, o pescoço, seu colo suado.
Finalmente, quando começa a clarear, a febre de Manuela dá
sinais de baixar, Mariana cochila.
– Acorda, dorminhoca, você não disse pra doutora que ia cuidar de mim?
– Eu, eu... que horas são? Seu remédio das nove...
– Já tomei, boba, estou brincando. Você não pregou o olho a
noite inteira, coitada. Desculpa de novo, só eu mesmo pra te dar um aluguel destes em pleno Natal.
– Bom, não tinha muita coisa pra fazer mesmo. Você pediu o café?
– Pedi, ia passar do horário, estava esperando você
acordar, vamos comer, estou com fome.
– Bom sinal.
Passam o dia todo e mais uma noite no hotel, Manuela não
queria ser vista daquele jeito. Agora, estão voltando para a Liberdade.
Conversam na camionete.
– Má, eu não entendo, eu já sabia que o Romeu era meio
esquisito, mas, enfim, quem não é?
– Bem esquisito! Né,
dona Manuela.
– Ele já tinha me empurrado uma vez, na outra apertou tanto
meu braço que ficou roxo. Achava que, com jeitinho, ele ia gostando mais de
mim, parava... Ele estava bravo porque queria, que queria, passar o réveillon na casa de um amigo dele.
– Amigo, sei!
– Já estava combinado que passaríamos o Natal com o
senador, ele estava contente, tinha nos liberado para o final do ano. Eu, é claro,
queria vir passar com minha família.
– Muito razoável.
– Daí, eu pensei, já sei como vou resolver isto. Tomei um
banho, me maquiei, passei perfume,
coloquei uma camisolinha...
– Não acredito que você fez isto – exclama Mariana.
– Fiz! Pensei, assim vou matar dois coelhos... A gente
nunca tinha tido um sexo assim bacana, nunca dava muito certo. Na minha cabeça,
arrumo isto e ainda ganho minha viagem.
– Ai, meu Deus! E daí?
– E daí que eu parti com tudo pra cima dele. Menina! O
homem enlouqueceu, não sei o que deu nele, ficou possesso, me chamou de puta pra baixo
e do resto, você viu o resultado.
– Nossa, que horror! Acho que você deveria ter levado a
sério aquele assunto da doutora.
– Pensei nisso, depois pensei nos meus alunos, na minha
família, isto não acabaria nunca. Não deu certo, não deu certo. O cara é louco,
pronto.
– Eu sei.
– Já me ligou duas vezes, quer que eu volte, quer vir pra cá,
pode?
– Pelo amor de Deus, Manuela, não faça isto! Será que este
pesadelo não acaba?
Pois não acabou, elas voltaram para a fazenda, não tinham
muitos motivos para comemorar, mas poderiam ficar bem. Romeu transformou a vida
das duas num verdadeiro inferno, ligava sem parar no telefone de Manuela, no de
Mariana, no da fazenda, Manuela não sabia mais o que fazer.
– Mariana do céu! Ele me disse que vai se matar, vai cortar
os pulsos e ficar lá, se eu não voltar ele vai sangrar até morrer.
– Pois, olhe, o mundo acordaria bem melhor, é muito bom
para ser verdade, este babaca não vai se matar.
– Má! Como é que você pode brincar com uma coisa destas, eu
estou ficando louca. O senador me ligou, ligou para meus pais, quer que eu
volte.
– Manu! Você tem passaporte?
– Como assim, passaporte, por quê?
– Tem ou não tem?
– Tenho, o senador mandou tirar para mim, tem até visto,
íamos todos para o apartamento de Boca Raton.
– Senador, senador! Tô cheia disso.
– Para, Má! Ele é tão bonzinho, tá certo que o filho é
louco, mas ele gostou tanto de mim.
– Bom, não é com ele que você ia se casar, lembre-se disso,
escapou de boa, quer saber. Seguinte, quer passar o réveillon em Paris?
– Pirou de vez, né?!
– Nunca estive tão lúcida!
– Acha, Má! Olha aí, ele de novo, eu não estou aguentando
mais!
– Me de cá este
telefone – pede calmamente Mariana.
– Romeu? É Mariana.
– Sua vaca, chifruda, filha duma puta, não conseguiu segurar seu homem, larga do pé da minha
mulher, vai cuidar da sua vida, sua puta!
– Romeu. Preste bem atenção, eu só vou falar uma vez. O
laudo médico da sua agressão à Manuela está no hospital, com foto, tudo
direitinho, só falta o seu nome em cima e a minha assinatura em baixo. Se você voltar
a ligar neste telefone, no momento seguinte, a cópia do boletim de ocorrência
estará em todos os jornais. Fui clara? Ótimo.
Mariana fecha calmamente o telefone e entrega para Manuela,
que olha incrédula.
– Do que mesmo que a gente estava falando? – pergunta
Mariana. – Ah! Lembrei! Paris! Vamos?
Manuela tem uma reação nervosa, começa a rir e a chorar ao
mesmo tempo.
– Minha amiga, você é louca! Não tenho dinheiro, não tenho
roupa, olhe para a minha cara, onde conseguiríamos passagem, hotel?
– Quer ou não quer? O resto é comigo.
– Quero, claro que quero.
Paris
– Má! Que lindo! Eu não acredito que estou aqui, olha lá a
Torre Eiffel! Quanta falta para a meia-noite?
– Está quase, venha, vamos atravessar o Trocadero.
– Parece que você é daqui – diz Manuela. – Não sabia que
você falava francês!
– Bom, fazia tempo que eu queria vir para cá, Regine sempre
me incentivou com o francês, je parle un
peu, pas beaucoup!
– Que máximo, fala mais, tô adorando. Agora, eu tava pra
te perguntar faz tempo. Fala sério! O que foi aquilo no telefone com o Romeu?
Você parecia outra pessoa, assustei.
– Julieta, Julieta, esqueça-te deste Romeu!
Mariana nunca fica à vontade com elogios. Manuela continua
falando:
– Acha! Nem lembro mais. Agora conta, de onde você tirou
aquilo?
– Era só a mais pura verdade, mas, cá entre nós, acho que
foi a Maninha, ela baixa em mim na hora do aperto.
– Cruz credo, Ave Maria, Mariana! Chego a ficar arrepiada
quando você fala estas coisas, eu vi acontecer, deve ser mesmo.
– Acho que, na verdade, era a minha mãe, ela continua comigo,
esteja onde estiver.
Os olhos de Mariana enchem-se de lágrimas, sua vida também
não tem sido fácil.
– Para já com isto – pede Manuela –, você sabe que eu sou
manteiga derretida, choro junto. Olha! Começaram os fogos, cadê o champanhe,
cadê meu celular, quero tirar uma foto. Má, sua tonta, você tá chorando, tira outra, vem cá.
Mariana pega a garrafa de champanhe e as taças da mochila,
abre e serve Manuela, brindam, abraçam-se e Mariana chora mais.
Chorou pelas vezes que não teve sua mãe por perto, por ter
sido tratada como o garoto que seu o pai não teve, pela vida dura e cheia de
cobranças, pelas coisas boas que não viveu, por perder o noivo para outra
mulher, que foi mais mulher do que ela.
Exausta disso tudo, finalmente, estava em Paris e feliz com
aquela palhaça que lhe fazia tão bem.
Manuela, como criança, festejou com os italianos, alemães,
japoneses, abraçou, brindou, tirou fotos, dançou com Mariana.
Estava frio, aos poucos, a praça foi se esvaziando, as
meninas seguiram a multidão, bordearam o Sena, começaram a subir a Av. George V
para a Av. Champs-Élysées.
– Olha, o Chez André! Exclama Mariana, de braços com
Manuela. – É um dos bistrôs preferidos de Regine, tá com fome?
– Muita!
Tem uma fila enorme, mas tudo é festa. Elas tomam uma taça
de vinho tinto, enquanto esperam na calçada. Toda aquela confusão está tão
longe que nem se lembram mais.
Acomodadas no couro vermelho dos estofados do Chez André,
um jantar de verdade. Manuela escolhe o Magret
de canard au poivre vert, pommes forestières; para Mariana, Châteaubriant grillé, sauce béarnaise.
Sobem a avenida até o Arco do Triunfo, param na Publicis
para comprarem umas coisinhas, resolvem tomar uma última taça de champanhe.
Sentam-se na brasserie,
olhando para a imensa parede de vidro. Bem na calçada em frente, com o Arco do
Trinfo ao fundo, na noite fria de réveillon,
duas garotas beijam-se apaixonadamente.
– Adorei Paris, Má! – brinca Manuela. – Também quero! – Dá
um selinho em Mariana, que é pega de surpresa.
– Para, boba!
As meninas descem a Av. Victor-Hugo para o apartamento,
algumas pessoas ainda passam, gritam bonne
année. Manuela, enlaçada no braço da amiga, excitada pela festa, a viagem e
tudo mais, tagarela sem parar.
Mariana caminha de mãos nos bolsos, balança a cabeça
concordando com tudo. Sente ainda os lábios macios e úmidos de Manuela quando
tocaram os seus.
As malas ainda estão espalhadas pelo apartamento, não
tiveram tempo de arrumar.
A mala de Mariana está no quarto de Regine, tem uma cama
enorme, cheia de travesseiros brancos e perfumados.
Manuela tira suas roupas úmidas e frias, joga-se naquela
cama grande, macia, e grita para Mariana:
– Maninha! Estou com saudade de casa, posso dormir na sua
cama?!
ISBN - 978-85-914195-4-8